Democracia
A expressão democracia surge bastante tarde no vocabulário grego, substituindo a anterior ideia de isonomia, conforme a defesa feita por Heródoto. Se em 468 a.C. é utilizada por Ésquilo, juntando demos e kratos, só em finais do século V, é que, com Tucídedes, entra na linguagem comum.
Se, para o sofista ateniense Protágoras, significa que todos os homens têm capacidade para fazer um juízo político, eis que, a partir do discurso de Péricles, se transforma em aspiração universal, ao assentar nos princípios da igualdade e da maioria, numa altura em que o modelo ateniense ainda era uma democracia mais directa do que representativa, por dominar a metodologia do uso da palavra, com a preponderância do debate oral no processo de formação das decisões e com um efectivo diálogo directo entre os governantes e os governados. Actualmente, a democracia não é o governo directo do povo, mas o governo de todos através de representantes escolhidos por todos, assentando nos mecanismos da igualdade de direito, da liberdade de expressão e do fair trial. Em termos sintéticos, podemos, pois, dizer que a democracia é o governo do povo, para o povo e pelo povo, de acordo com a regra da maioria, mas tolerando a oposição das minorias.
Tanto exige a participação política da massa popular nas decisões, como impõe que a regra da maioria se submeta ao processo de separação dos poderes e ao regime de controlo do poder, impedindo o esmagamento das minorias. Assenta na liberdade de expressão de pensamento e de associação e tem como fundamentalismo a autonomia e a dignidade da pessoa humana, bem como a noção de indivíduo, tendendo a consagrar, como meta justicialista, a igualdade de oportunidades.
Subscrevemos a definição de democracia de João Paulo II, como aquele sistema que assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno. Repetimos o que dela disse o sexto presidente norte-americano, John Quincy Adams: a democracia é o autogoverno da comunidade pela vontade conjunta da maioria dos seus membros.
Podemos até caracterizá-la, de acordo com a perspectiva de Robert Dahl, em Democracy and its Critics, de 1989, como uma ordem política que exige sete condições:
1) cargos electivos para o controlo das decisões políticas (elected officials);
2) eleições livres, periódicas e imparciais (free and fair elections);
3) sufrágio universal (inclusive suffrage);
4) direito a ocupar cargos públicos (right to run for office);
5) liberdade de expressão (freedom of expression);
6) existência e protecção, dada por lei, da variedade de fontes de informação (alternative information);
7) direito a constituir associações e organizações autónomas, partidos e grupos de interesse (associational autonomy).
Sabemos, contudo, que há sempre degenerescência, essa mudança pela qual uma coisa perde as qualidades que tinha na sua origem, desviando-se da sua natureza, abastardando-se e mudando de sentido, pelo que entra em disfunção. Os clássicos do pensar a polis já salientavam que todo o poder político está sujeito a corromper-se, salientando que o movimento da degenerescência é provocado pela desagregação do múltiplo a partir do uno, quando o uno não consegue a harmonia. Quando cada cidade não é uma, mas muitas, como salienta Platão. Quando são pelo menos duas, inimigas uma da outra, uma dos pobres e outra dos ricos. Quando a cidade não consegue aumentar, permanecendo unida. Quando a cidade cresce na multiplicidade e não na unidade e não se alarga como um círculo.
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DEMOCRACIA
1 — Breve referência à história do conceito.
2 — Definições.
3 — As duas concepções basilares de democracia
O conceito de democracia pode referir-se a um ideal ou a um princípio — situando-se assim no domínio das ideologias — ou a vários tipos de regimes políticos. Adjectivamente, aparece-nos em muitas outras perspectivas: fala-se de «personalidade democrática» e de «métodos democráticos» no âmbito da psicologia e da teoria das organizações, respectivamente; e muitos outros exemplos poderiam ser apresentados. Mas será naqueles dois primeiros sentidos — o ideal democrático e os regimes políticos democráticos — que concentraremos a nossa atenção.
1. Breve referência à história do conceito
D. é um daqueles vocábulos que conheceram vida mais atribulada ao longo da história das ideias políticas. Aparecido na Grécia clássica (demokratia: governo ou poder do povo), onde designava essencialmente aqueles regimes em que as decisões eram colectivamente tomadas pelos cidadãos, o termo viria a passar por um longo período de quase total eclipse. Segundo Schmalz, a palavra só teria sido utilizada por três vezes, e quase sempre em obras de segundo plano, desde o período latino clássico até ao séc. IV da nossa era. No começo da Idade Média o termo raramente é utilizado e apenas por autores que se referem à Política de Aristóteles. Os autores medievais preferiam falar da deitas, da potestas popularis ou do imperium populi. No séc. XVIII o termo tornou-se praticamente antónimo de república, pois designava o poder de uma parte (o povo), enquanto por república se entendia o poder de todos os cidadãos. Assim se explicam as considerações de um autor como Kant, que via na D. «necessariamente um despotismo», ou, como Madison, que sempre preferia referir-se à «república representativa». O prestígio actual do termo parece dever-se em larga medida à derrota dos regimes antidemocráticos de tipo fascista na II Guerra Mundial; hoje em dia quase todos os Estados e regimes existentes à face da Terra se dizem democráticos. Perante uma utilização tão corrompida, já várias vezes se colocou a questão da própria necessidade do termo, tendo alguns autores chegado a propor pura e simplesmente a sua supressão do vocabulário analítico, relegando-o para o léxico ideológico e olhando com grande suspeição o seu emprego em ciência política.
2. Definições
Uma noção com tão vasta margem conotativa conhece obviamente um grande número de definições, as quais variam fundamentalmente em função dos valores assumidos e do contexto e dos fins da sua utilização. Como muito justamente apontou Sartori, autor de uma das obras indispensáveis sobre a teoria democrática, «o termo democracia não possui apenas uma função descritiva ou denotativa, mas também normativa e persuasiva. Consequentemente, o problema de definir a democracia tem um aspecto duplo, exigindo tanto uma definição descritiva quanto uma prescritiva». Mas, para além das dificuldades definitórias suscitadas pelas diferentes utilizações do termo, outras há, e mais decisivas, que resultam do seu próprio conteúdo. Com efeito, o problema crucial com que se debatem quase todas as definições é o da opção (ou mesmo: o do dilema) entre os valores nucleares do conceito, a igualdade e a liberdade. Aquilo que torna o ideal democrático por um lado tão poderoso e por outro quase inútil é a original ambiguidade do conceito, a qual resulta da contradição entre os dois princípios (de igualdade e de liberdade) que lhe subjazem. D. é por isso uma noção eminentemente paradoxal e os pensadores de matriz liberal e de orientação marxista não estão enganados quando, por caminhos diferentes e com propósitos opostos, fazem notar que, em matéria de igualdade e de liberdade, a exigência de uma tende normalmente a limitar o exercício da outra. Alguns autores tentam contornar este obstáculo através de definições extensivas, do tipo da célebre fórmula de Lincoln, no seu discurso de Gettysburg, em 1863: «Democracia é o poder do povo, pelo povo e para o povo». Mas o valor operacional de tais definições é praticamente nulo.
Consideremos as seguintes estratégias de definição normalmente utilizadas:
a) enumerar as características consideradas como mínimas para a classificação de um dado regime como democrático;
b) organizar o conteúdo (descritivo ou normativo) do conceito em torno de uma ideia-chave, que pode ser a da participação, a da competição ou ainda a do grau de concentração do Poder, p. ex.;
c) definir ex adverso;
d) aceitar uma pluralidade de definições, relativizando-as ou até ensaiando uma síntese entre as diferentes concepções ideológicas implicadas.
Vejamos alguns exemplos destes diferentes tipos de definição:
a) Ranney e Kendall procuram uma definição operacional através do estabelecimento dos seguintes requisitos mínimos para a classificação de um regime como democrático: soberania popular, igualdade política, consulta popular e regra da maioria. E os autores lembram que «todos estes quatro elementos deverão estar presentes e que cada um deles considerado em si mesmo só assume um sentido democrático se estiver pressuposta a presença dos outros três». Segundo Juan Linz, um regime é democrático quando permite a livre formulação das preferências políticas através do exercício das liberdades básicas de associação, de informação e de comunicação, a fim de estabelecer urna competição livre entre os dirigentes, de modo que se controle regularmente, e por meios pacíficos, o seu direito a governarem. O interesse desta definição reside na tentativa que faz de incluir os pontos essenciais da teoria democrática (liberdades políticas, competição, representação), mantendo o equilíbrio entre eles e não abandonando os propósitos de uma classificação operacional.
b) Entre as noções reputadas fundamentais para o conceito de D. retenhamos as de representação, de competição e de grau de concentração (ou de dispersão) do Poder. É clássica a oposição entre a chamada teoria do mandato e a da competição. A primeira tem um carácter eminentemente prescritivo; os "seguidores definem a D. como um sistema de representação. Na esteira das consagradas teorias da soberania popular, a D. é definida como o «poder do povo». Dada a impossibilidade do exercício simultâneo deste por todos os cidadãos (excepto nos casos de D. directa ou de autogoverno), a soberania tem que recorrer a formas de representação. A característica da representação democrática residiria, nesta perspectiva, na escolha dos representantes por eleição. Menos normativa, evitando aquilo que nalguns casos se considera a ficção da representação, surge-nos a teoria da competição. Um exemplo célebre da sua aplicação é-nos dado por Schumpeter, o qual, significativamente, não define o conceito mais ou menos abstracto de D. mas sim o método democrático: «O método democrático é o sistema institucional destinado à elaboração de decisões políticas no qual os indivíduos adquirem o poder de legislar sobre estas decisões no seguimento de uma luta competitiva para a obtenção dos votos do povo». Mais próxima desta perspectiva do que da primeira encontramos a definição de D. como um poder partilhado ou poliarquia, termo que viria a ser popularizado por Robert Dahl, mas que era já utilizado por Karl Loewenstein: «A dicotomia básica de sistemas políticos e de sistemas de governo [...] seria melhor expressa, terminologicamente, pelo par de opostos 'policracia' e 'monocracia', o primeiro denotando partilha e o último o exercício concentrado do poder político.»
c) Uma outra forma de descrever o conteúdo do conceito de D. consiste na sua definição ex adverso, por aquilo que a D. não é. Entre outros, este caminho também é seguido por Sartori, que afirma, a dado momento: «Numa palavra, democracia não é autocracia.» Mas a definição de D. como oposto de autocracia não fica completa se não se referir, como o faz, aliás, o autor citado, aquilo em que os conceitos se opõem. E Sartori concretiza: «A diferença entre a democracia e o seu oposto reside no facto de, nela, o Poder se encontrar distribuído, limitado, controlado e ser exercido rotativamente.»
d) Perante a extensão do conceito, muitos autores preferem ensaiar uma síntese que normalmente sucede à aceitação crítica das diversas definições «parciais». A definição de Linz acima apresentada poderia igualmente figurar nesta categoria. As definições normalmente propostas pelos juspublicistas orientam-se também, apoiadas em critérios formais, num sentido de síntese. Poderemos nesta perspectiva definir regime democrático como aquele em que existe efectiva competição para o exercício do poder político e em que este, normalmente exercido através de mecanismos de representação por via electiva, respeita os princípios de igualdade perante a lei e as liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.
3. As duas concepções basilares de democracia
Como as diversas definições recolhidas deixam antever, existe em torno do conceito uma incerteza que decorre da diferente ponderação dos valores de liberdade e de igualdade. Assim, não parece exagerado falarmos de uma concepção de D. liberal por oposição a uma outra, também com largas tradições no pensamento político europeu, e que designaremos por D. radicai ou igualitária.
A D. liberal filia-se em toda a riquíssima corrente formada, entre muitos outros, pelos nomes de Tocqueville, de Stuart Mill, de Berttand de Jouvenel e de Raymond Aron. O seu valor nuclear é a liberdade e as ideias fundamentais do seu discurso referem-se à necessidade de colocar limites ao Poder; na esteira de Stuart Mill, que nos advertia contra os perigos de «tirania da maioria», Jouvenel observa: «A ficção democrática proporciona aos líderes a autoridade total. É o todo que deseja, é o todo que age.»
A D. radical, pelo seu lado, assenta na exigência de igualdade e apoia-se nas concepções de Rousseau e dos teorizadores da soberania popular, bem como, para quem considerar que se pode falar ainda no seu caso de D., nos trabalhos de Marx. Rousseau pôde afirmar, nesta perspectiva, que «la volanté générale est toujoars droite et tend toujours l’utilité publique» (Du contrat social, liv.II, cap. III) e Robespierre deu o passo seguinte quando sustentou: «A nossa vontade é a vontade geral.» Os marxistas, pelo seu lado, não andam longe desta orientação quando vêem o proletariado, ou o Partido Comunista, como o intérprete da «vontade geral», a qual, logicamente e no interesse da Revolução, não admite resistência.
Lá onde a concepção democrático-liberal realça a competição e a alternância no exercício do Poder, vem a concepção democrático-radical sustentar a necessidade de uma representação unitária, pois a vontade geral seria tendencialmente indivisível. Da soberania da lei passou-se à ideia de soberania do povo. Do princípio de isonomia — igualdade dos cidadãos perante a lei — transita-se para a exigência de igualdade económica, social e cultural. A percepção da diferença como algo de positivo, na doutrina liberal, passa a assumir carácter negativo na D. igualitária. A «institucionalização dos conflitos» (Dahrendorf) e a «sociedade aberta» (Popper), características de uma concepção liberal, são negadas pelos defensores da igualdade em nome dos interesses das «classes oprimidas» ou da passagem a estádios mais «avançados» (o socialismo, o comunismo) de organização social.
José M. Durão Barroso
BIBLIOGRAFIA
G. Sartori, Democratic Theory, Detroit, 1962; (…)