Individualismo
O fundamento do legado político ocidental está, sem dúvida, no humanismo individualista, naquela concepção do mundo e da vida que radica na perspectiva estóica do homem como coisa sagrada e que vai levar ao entendimento do mesmo como fenómeno que nunca se repete. Essa ideia básica do homem como in+diviso, como substância, de que derivam algumas consequências primordiais. Em primeiro lugar, o experimentalismo maiêutico, onde a verdade é, sobretudo, a procura da verdade a partir das circunstâncias, a partir de sucessivas tentativas de procura da verdade. Em segundo lugar, a ideia de racionalidade, onde o único princípio de actuação que governa todas as coisas é estar de acordo com os princípios racionais e com os objectivos racionais. Em terceiro lugar, a perspectiva instrumental do político, a consideração de todas as organizações dos homens, da polis ao Estado, como meros mecanismos que devem ser utilizados para servirem fins mais elevados. Em quarto lugar, a consideração de que na base de todas as associações humanas tem de estar a vontade de cada indivíduocom a concequente perspectiva do político como produto do consentimento. Em quinto lugar, a perspectiva do direito como algo que existe antes do político e não como um produto do político, ideia que conduz às actuais concepções do Estado de Direito, entendido como aquela forma de organização do político que entende o direito como o fundamento e também o próprio limite do poder. Em sexto lugar, a rejeição da perspectiva que proclama que os fins justificam os meios, dado que os fins não têm uma existência independente dos meios empregues para os alcançar, mas, pelo contrário, são constantemente moldados por eles. Em sétimo lugar, a consideração que a discussão e a vontade expressa são os meios típicos pelos quais uma sociedade resolve diferenças de pontos de vista, servindo para solucionar os próprios conflitos de interesses. Finalmente, a concepção inevitável da igualdade básica de todos os seres humanos (). É esta a perspectiva que leva um Alexis de Tocqueville (1805-1859) a proclamar que o indivíduo é o melhor juiz do seu próprio interesse, não tendo a sociedade o direito de intervir nas suas acções a não ser quando se sente lesada por elas ou quando tem necessidade do seu concurso () e a dizer que só se conhece um processo para impedir que os homens se degradem: é o de não conceder a ninguém um poder absoluto, susceptível de nos envilecer (), pelo que o processo mais eficaz, e talvez o único que resta, para interessar os homens pelo destino da sua pátria, é levá-los a participar no Governo (). Pensamos principalmente nas linhas de força fundamentais dessa concepção do mundo e da vida que entende o indivíduo dotado de autonomia e de independência, isto é, que possui tanto uma capacidade interior que lhe permite uma racional autodeterminação como uma espécie de soberania que o faz ser um actor separado dos demais como entidade indiluível no todo (). Porque, como proclamava Agostinho da Silva, todos os homens de todos os povos tendem naturalmente a preservar acima de tudo o seu direito de ser, isto é, de ser o que na realidade são, com o mínimo de intervenções dos poderes ou das coacções que por acaso sejam necessárias para que funcione o organismo social. Um individualismo, com origens remotas em Sócrates, nos epicuristas e nos estóicos, esses que definiram a circunstância do indivíduo ter a sua razão de ser, não numa relação social, mas na relação de cada um consigo mesmo, com a respectiva consciência. Depois, com o cristianismo, reforçar-se-ia o processo da interiorização com a consideração da existência de uma alma pessoal, livre e singular, com a existência do homem como ser que nunca se repete que tem de procurar ele próprio a salvação pessoal. Essas raízes, depois de se desenvolverem com a Renascença e o jusracionalismo, deixaram o domínio das teorias e transformaram-se numa prática, principalmente, a partir do século XIX. Tornaram-se um elemento tão estruturante da nossa normalidade quanto o ar que se respira. Com efeito, o individualismo ocidental de matriz estóica partiu do princípio que o homem era a substância e que a polis era mera circunstância. Que no princípio e no fim estava o homem e que, só depois do homem, vinha a cidade. Nisso se sintetiza o legado político fundamental do nosso humanismo, quando cada homem se considera como uma coisa sagrada, o homo, hominis res sacra de Séneca, e que também conduziu ao universalismo da consideração de todos e cada um dos homens como cidadãos do mundo, como membros de um só destino, a sociedade do género humano. A partir de então, os homens descobriram que todo o dever-ser constitui mero transcendente situado, a que qualquer um acederia através da recta razão, se tentasse a estar de acordo consigo mesmo, libertando-se dos constrangimentos, nomeadamente das paixões. Da ideia de indivíduo brota naturalmente a ideia de que é o homem que faz a história, o que contraria a concepção providencialista e o modelo do processo histórico hegeliano ou marxista. Com efeito, a divina providência é uma espécie de irmã gémea do espírito do mundo e da humanidade, abstracções apostadas em considerar que é a história que faz o homem.
De facto, com Santo Agostinho, reconsidera-se, contra a ideia de racionalidade do homem, que o fim do homem ultrapassa a história, que o sentido último da história é traçado por Deus e, portanto, impenetrável para o homem; que a história, entendida como a luta do pecado contra a redenção, é consequência da divina providência e já não da deusa Fortuna. Temos assim que só passou a haver política quando se concebeu uma metapolítica, quando tratou de se fazer depender a polis de um fim, de uma razão, de uma ideia suprapositiva. Quando a polis deixou de ser apenas ordem e tratou de subir à categoria de governação, onde o reger é caminhar para um certo fim, é pilotar, conduzir o navio a um determinado ponto futuro.
Individualismo metodológico