Khruchtchev, Nikita 1894-1971
Como quase sempre acontece face às evoluções de uma continuidade que tenha elevado ao paroxismo a personalização do poder, os sucessores da pesada herança tendem a gerar uma viradeira com a intenção de criar novos espaços de apoio ao poder, sobretudo entre os anteriores dissidentes, para o que, depois de proclamarem a fidelidade, logo tratam de substituir de forma espectacular alguns dos actores secundários mais proeminentes da ordem anterior. Na URSS isso não vai acontecer logo após a morte de Estaline, dado que, durante alguns dias, tudo parecia continuidade, com Malenkov, em 6 de Março, a ser é nomeado Presidente do Conselho de Ministros e primeiro secretário do Partido, com Béria, que mantinha o Ministério do Interior, a assumir a Vice-Presidência. Mas, quinze dias depois, a 21 de Março, eis que se anuncia um novo secretário do Comité Central do PCUS: Nikita Sergueievitch Khruchtchev (1894-1971). Tratava-se de um engenheiro que fora responsável pela construção do metropolitano de Moscovo, primeiro secretário do partido na Ucrânia, de 1938 a 1940, um condecoradíssimo herói da resistência de Estalinegrado, donde, de 1949 a 1953, passara a 1º Secretário do partido em Moscovo. Não tarda que os órgãos de propaganda do regime, a partir de 16 de Abril, comecem a falar num novo princípio: o da colegialidade. E em 28 de Março era publicado um decreto de amnistia, onde eram libertados todos os que tinham sido condenados a menos de cinco anos de prisão, ao mesmo tempo que se reduzia para metade a pema de todos os outros. Anunciava-se também que nova legislação penal iria suprimir a responsabilidade criminal para os delitos económicos. Surpreendentemente, em 4 de Abril, o Pravda anunciava que a conjura das batas brancas tinha sido fabricada pela polícia política e que as confissões tinham sido arrancadas sob tortura. A viradeira estava a começar. Em 10 de Julho anunciava-se a prisão de Béria. E mais não se dizia. Apenas em 23 Dezembro de 1953 se explicava que o mesmo Béria fora preso no dia 26 de Junho e executado no mesmo dia, depois de um processo secreto. Como refere Edgar Morin, era o conflito entre o aparelho e a sua própria polícia: esta devia necessariamente ser o instrumento total da repressão total, mas, agindo assim, tornava-se um superaparelho todo-poderoso que ameaçava o próprio aparelho. Daí a depuração constante dos chefes de polícia, Iagoda, Ejov, até à mais recente de todas, a de Béria. A desestalinização marca a derrota definitiva do superaparelho policial, mas ao preço de uma degradação da omnipotência do aparelho, de uma primeira partilha do poder com o exército e os técnicos. A rápida ascensão de Khruchtchev significou, sobretudo, a vitória do aparelho do partido sobre o aparelho militar e policial. Com efeito, com Estaline, depois da repressão da segunda metade dos anos trinta e, principalmente, por efeito da guerra, o partido deixou de constituir o vértice do aparelho de poder, dado que o pai dos povos preferiu colocar, na sua directa assessoria, o aparelho militar e o aparelho policial. Com a ajuda dos tecnocratas, em Agosto de 1954, trata de fazer a revisão do plano estalinista, tendo em vista o acréscimo de produção de bens de consumo e o desenvolvimento da agricultura, em vez da anterior aposta na indústria pesada, contra as teses defendidas por Malenkov, que se retira em Fevereiro de 1955. Ganham, com este afastamento, tanto o Ministro da Defesa, Jukov, como o Presidente do Conselho de Ministros, Nikolai Bulganine (1895-1075).
Coexistência pacífica
Ao mesmo tempo, surgem inequívocos sinais de desanuviamento na política externa, em nome da restaurada tese da coexistência pacífica, que já havia sido utilizada depois de 1922. Como disse Nikita no XX Congresso do PCUS: ou a coexistência pacífica ou a guerra mais destrutiva da história. Não há outra saída. Assim, eis que em 19 de Maio de 1955, URSS restitui a soberania à Áustria. E que logo a seguir devolve à Finlândia a base naval de Prokkala bem como Port Arthur à China Não tarda o estabelecimento de contactos políticos com a República Federal da Alemanha, com a visita de Adenauer a Moscovo em 13 da Setembro de 1955. E, nesta sequência, em 7 de Outubro a URSS liberta os ultimos prisioneiros de guerra alemães Também em Maio de 1955 Khruchtchev e Bulganine visitam Tito em Belgrado, admitindo, deste modo, o comunismo nacional e reconhecendo que há caminhos diferentes para o socialismo. Era, pois, natural que surgisse a chamada Conferência dos Quatro Grandes em Genebra em Julho de 1955, a primeira desde 1947.
O degelo
O processo de mudança na URSS culmina em 25 de Fevereiro de 1956, no XX Congresso do PCUS, quando Khruchtchev, aí apresenta, à porta fechada, um incisivo relatório, onde é particularmente denunciado o sistema de governo de Estaline. Chegava a época do degelo, com a libertação de muitos prisioneiros por delitos de opinião, a retirada do corpo de Estaline do mausoleu de Lenine e a transformação dos campos de concentração em colónias de reeducação pelo trabalho. Mas as rosas da mudança continuam a ter sangrentos espinhos e Khruchtchev, para manter-se é obrigado a largar o princípio da colegialidadea procurar, de novo, a personalização do poder. Assim, em Junho de 1957, Molotov era expulso da direcção do partido, começando o processo de ataque ao grupo anti-partido, de que também fariam parte Gueorgui Malenkov, Lazar Kaganovitch e Kliment Vorochilov. Já a partir de Outubro do mesmo ano vão começar a cair os antigos aliados de Khruchtchev: primeiro o Ministro da Defesa, Jukov; depois, em Março de 1958, Bulganine. Com efeito, como assinalava Edgar Morin, o aparelho tem igualmente de lutar contra o exército e reforçá-lo, de lutar contra a burocracia e reforçá-la, de lutar contra a classe operária e reforçá-la. Com efeito, a burocracia não possui nenhum suporte autónomo como o exército ou a NKVD: o seu único supoorte é o próprio aparelho, que não é outro senão o esqueleto do Estado Finalmente, strutura-se o 6ºPlano Quinquenal de 1956-1960, onde se prevê a supressão das estações de máquinas e tractores, com a venda dos mesmos aos kolkozes, bem como a regionalização da indústria. Com efeito, no domínio da política agrícola, Khruchtchev optou por um desenvolvimento extensivo, nomeadamente desbravando as terras virgens da Sibéria, bem como pelo refortalecimento dos sovkhozes e pelo reagrupamento dos kolkhozes. Do mesmo modo, apostava-se no desenvolvimento da indústria química, como um meio de apoio à agricultura. Mas o 6º Plano é logo abandonado em 1957 e, em 5 de Fevereiro de 1959, quando se concluiu o XXI Congresso do PCUS, iniciado em 27 de Janeiro, adopta-se um plano septienal (1959-1965). Conforme as orientações aprovadas pelo mesmo congresso, na corrente década a União Soviética, enquanto cria a base tecnico-material do comunismo, ultrapasará per capita a produção do mais poderoso e rico país capitalista -os Estados Unidos. Este optimismo propagandístico proclamava também que o desenvolvimento da democracia, a participação de todos os cidadãos na edificação económica e cultural, a gestão dos assuntos sociais, constituem o elemento essencial no desenvolvimento da estrutura socialista do Estado. Assim, importava tanto a construção das bases materiais e técnicas do comunismo como a educação do homem do futuro e o desenvolvimento entre os soviéticos da moral comunista. O modelo de Estado também parecia evoluir, dado que o mesmo, tendo surgido como ditadura do proletariado passava a qualificar-se como Estado do Povo Inteiro, nomeadamente por causa das experiências de auto-administração que, nas colectividades locais, nos sindicatos e noutras associações, se iam empreendendo. Segundo o novo programa do PCUS aprovado pelo XXII Congresso, de 12 a 31 de Outubro de 1961, o Estado socialista entrou num novo período de desenvolvimento. Começou o processo de transformação do estado em organização de todos os trabalhadores da sociedade socialista. A democracia proletária foi-se convertendo cada vez mais em democracia de todo o povo... À medida que se desenvolva a democracia socialista, os órgãos de poder do estado ir-se-ão convertendo em órgãos de auto-gestão social. Outra era, na verdade, a ditadura dos factos, dado que, entre 1963 e 1965, a URSS teve de começar a fazer importações maciças de trigo dos USA e do Canadá. E a taxa de expansão da indústria é apenas de 7% contra os 13% previstos. Na frente da guerra fria, os soviéticos são, entretanto, sujeitos em importantes desafios. Em Junho de 1953 acontecera a revolta operária de Berlim. Em Junho de 1956 vai dar-se a sublevação de Poznam. Em 24 de Outubro de 1956 é a vez da revolta popular da Hungria. Assim, visando uma coordenação mais estreita dos países de Leste, suscitada, sobretudo, pela entrada da República Federal da Alemanha na NATO, surge em Maio de 1955, como resposta do Leste, o Pacto de Varsóvia Os êxitos da política externa soviética ocorrem, sobretudo, no Terceiro Mundo, nomeadamente a partir da Conferência de Bandung, de 18 a 26 de Abril de 1955, e da crise do Suez, na segunda metade de 1956, culminando com a revolução castrista, em Cuba, em 1 de Janeiro de 1959. Com efeito, a URSS, a partir de Bandung, privilegiando as relações com o Egipto de Nasser e com a Índia de Nehru, estabeleceu um programa de influência sobre o Terceiro Mundo que vai ter pleno acolhimento na I Conferência de Solidariedade Afro-Asiática, realizada no Cairo entre 26 de Dezembro de 1957 e 1 de Janeiro de 1958. Segundo muitos observadores, foi nesta Conferência do Cairo que a URSS fez a sua entrada em força em África, conseguindo que as jovens nações africanas, em nome da solidariedade afro-asiática não se referissem ao neo-colonialismo e ao imperialismo soviéticos, ao contrário do que chegou a ser esboçado em Bandung. A crise do Suez e a guerra da Argélia vieram depois acelerar o processo de ligação da URSS ao terceiro-mundismo, sendo disso bem sintomática a assinatura, em 25 de Agosto de 1959, de convenções técnicas e económicas com a Guiné-Conakry. A vitória da revolução castrista em Cuba, em 1 de Janeiro de 1959 e a inabilidade da política externa de Eisenhower que, em Julho de 1960, decidiu diminuir em 700. 000 toneladas anuais, as importações de açúcar de Cuba, vão fazer com que a URSS possa ter uma lança no próprio coração da América Apesar de tudo, há um retrocesso da influência soviética no Iraque, com o Baas a suprimir o Partido Comunista, e na Indonésia, com Sukarno a voltar-se para Pequim. Também em Africa há alguns reveses, com a inflexão de Sekou Turé e a subida ao poder de Mobutu. Isto é, a Guerra Fria foi-se transformando numa sucessão de empates técnicos integrados numa espécie de jogo de soma zero. A competição vai também chegar ao espaço quando em 4 de Outubro de 1957 a URSS lança o primeiro satélite artificial, o Sputnik I, para, logo depois, ensaiar o disparo do primeiro míssil balístico intercontinental. Não tarda que a mesma URSS, confirmando a liderança na corrida espacial, coloque, em 21 de Abril de 1961, o primeiro homem no espaço, Gagarine. A partir de então, a Guerra Fria, pelo menos na Europa Ocidental, atingiu as dimensões do grande medo que, eufemisticamente, se foi qualificando como disuassão ou equilibrio pelo terror. Foi neste ambiente de medo pelos mísseis soviéticos que medrou o pacifismo ocidental que, depois de, no Maio de 68, ter proclamado o hippie slogan do make love not war, acabou, menos romanticamente com o slogan de antes vermelhos que mortos, já nos anos oitenta. O Encontro de Camp David, de 25 de Setembro de 1959, entre Khruchtchev e Eisenhower, vem agravar a tensão internacional, traduzindo-se, nomeadamente no abate de um avião espião americano U2 pelos soviéticos em Maio de 1960. Nesse encontro, a URSS não aceitara o princípio dos open skies, proposto por Eisenhower, para a vigilância mútua de movimentos militares. Tinha, entretanto, subido a Presidente dos Estados Unidos da América John Kennedy, em 20 de Janeiro de 1961, que parecia disposto a vencer os desafios soviéticos através de um novo estilo. Mas depois do fracasso do desembarque na Baía dos Porcos (Cocinos Bay), em 20 de Abril de 1961, o ambiente de tensão entre as duas superpotências atinge o rubro, não permitindo o desanuviamento na Cimeira de Viena de 3 de Junho de 1961. Aliás, logo em Agosto de 1961 inicia-se a construção do Muro de Berlim e em Outubro do ano seguinte dá-se a crise dos mísseis de Cuba quase levou a um confronto directo entre norte-americanos e soviéticos.