Vamos começar por analisar a estruturação do movimento eslavófilo, onde se destacam autores como Aksakov, Samarine, Khomyakov e Kireievski, em dialéctica com os chamados ocidentalistas, como Belinski, Herzen e Bakunine, nas décadas de trinta e quarenta do século XIX, profundamente influenciados pelo processo de recepção do idealismo alemão, nomeadamente através de Friedrich W. J. Schelling (1775-1854) e G. W. F. Hegel (1770-1831).
O tronco comum de eslavófilos e ocidentalistas (ditos em russo zapadniki) estava, pois, nessa mistura explosiva do romantismo e da dialéctica hegeliana, que os levou a percorrer os caminhos da procura da missão ontológica do povo russo, tentando descobrir-se o destino e a diferença da Rússia. O próprio Herzen chegou a reconhecer, relativamente aos dois grupos: somos parecidos ao deus Janus, de dupla face, temos apenas um único amor pela Rússia, mas este amor tem dois aspectos.
Comecemos pela eslavofilia, assinalando que os respectivos precursores foram eslavos de fora da Rússia e até estranhos à Igreja Ortodoxa no século XVII, um croata católico; no século XIX, um eslovaco luterano. Com efeito, tudo talvez tenha começado com Yuri Krizhanitch (n. 1617) . Outro dos precursores do pan-eslavismo é um eslavo ocidental, o luterano eslovaco L'udevit Stúr (1815-1856), em Os Eslavos e o Mundo Futuro, obra escrita em alemão no ano de 1856, mas apenas publicada em tradução russa em 1867. Analisando agora as raízes do movimento eslavófilo do interior da Rússia, importa assinalar o magistério do antigo hussardo Piotr Tchaadaev (1794-1856). Depois dele, assinale-se Alexandre Odoievski (1802-1869), fundador da primeira sociedade filosófica russa, a Obchtestvolionbomudrov. Como refere Besançon, os eslavófilos viam na lei uma opressão, e preferem o Estado de facto ao Estado de Direito, porque o primeiro é mais compatível com o reino do Espírito (op. Cit. Pp. 69-70). Mas não deixam de alimentar a esperança. Como então dizia Nikolai Gogol: um dia hão-de dirigir-se a vós, não para comprar toucinho ou cânhamo, mas para ir buscar a verdadeira sabedoria, que já não se pode encontrar nos mercados ocidentais. Com o antigo oficial de cavalaria Aleksi Khomiakov (1804-1866), eis que o antiocidentalismo e a eslavofilia surgem já devidamente estruturados numa espécie de teologia ortodoxa de recorte neoplatónico. Por seu lado, o monge Ivan Kireivski (1806-1856) vai tentar conciliar a filosofia e a religião através daquilo que qualifica como uma metafísica auctótone. Depois, Konstantin Aksakov (1817-1860) trata de defender as liberdades dos antigos russos, referindo que a história da Rússia é uma história santa. Outro autor, Tichtchev, salienta que o povo russo é cristão não apenas pela ortodoxia da sua fé, mas também por algo mais íntimo. É cristão por aquela capacidade de renúncia e sacrifício que é o fundamento da sua natureza moral. Também Yuri Samarine (1819-1876) insiste em opor o eslavofilismo ao mundo romano-germânico. Com Nikolai Danilevski (1822-1885), em Rússia e Europa. Uma Pesquisa das Relações Culturais e Políticas do Mundo Eslavo com o Mundo Germano-Latino,de 1869, obra primeiramente publicada no mensário Zarya e, dois anos depois, em forma de livro, vai surgir uma espécie de bíblia do pan-eslavismo. Nikolai Strakhov, chega mesmo a editar uma obra intitulada A Luta Contra o Ocidente.
Mas outra era, então, a perspectiva de Karl Marx sobre o pan-eslavismo: a sua coloração revolucionária não é senão uma hipocrisia que visaria ocupar uma parte da Alemanha para a restituir ao mundo eslavo . Para Marx, não se trata de determinar quem governará em Constantinopla ou quem reinará sobre a Europa inteira [...] A luta por Constantinopla põe a questão de se saber se a cultura ocidental vai ceder o passo à cultura bizantina ou se o antagonismo entre ambas se irá acentuando e virá a revestir formas mais terríveis do que nunca [...] A raça eslava, durante muito tempo dividida pelas suas querelas intestinas, repelida para Leste pelos alemães, submetida em parte pelos turcos, os alemães e os húngaros, encontrou-se, graças à súbita expansão do pan-eslavismo a partir de 1850, rapidamente reunida. Tendo de defender pela primeira vez essa unidade, seria levada a declarar uma guerra sem tréguas à raça latina, céltica e germânica, que até agora governam o Continente. O pan-eslavismo não é um movimento que aspire apenas à independência nacional, é um movimento que, voltando-se contra a Europa, aniquilaria os frutos de mil anos de História. Não poderia chegar aos seus fins sem riscar a Hungria, a Turquia e uma boa parte da Europa. E, para conservar esses resultados, se conseguisse obtê-los, o pan-eslavismo deveria subjugar a Europa. O que não era mais do que uma ideologia tornou-se hoje um programa, ou melhor, uma ameaça política apoiada por 800 000 baionetas.
É neste contexto que emerge a figura de Aleksandr Herzen (1812-1870) que, antes de assumir a eslavofilia, tinha sido um entusiasta do ocidentalismo primeiro à maneira de Hegel e, em seguida, à de Ludwig Feuerbach (1804-1872), principalmente a obra Des Wesen des Christenthums, de 1841. A mudança de Herzen teria, aliás, ocorrido depois do autor, no exílio, ter sofrido a ressaca da revolução de 1848, passando, a partir de então, a detestar o que vai qualificar como o mercantilismo ocidental. Herzen, que nunca deixou de ser um romântico socialista, pouco dado a conciliações com o racionalismo de Marx, sonhava com uma federação das comunas camponesas livres. E, neste ponto, ter-se-á inspirado nas teses do historiador prussiano Barão August von Haxthausen que, entre 1847 e 1852, descrevia idilicamente o colectivismo agrário das aldeias russas no tempo de Nicolau I, as obshina, onde as assembleias camponesas (mir) tinham a missão de gerir colectivamente a terra comum e de arbitrar as disputas entre particulares. Comunas que têm algumas semelhanças com as assembleias de vizinhos da nossa Idade Média, muito particularmente com o conventus publicus vicinorum, que tanto influenciou o municipalismo romântico do nosso Alexandre Herculano. As posições comunalistas de Herzen aproximam-se, também, do primitivo federalismo municipalista dos republicanos portugueses, como foi expresso por Henriques Nogueira, e têm certas afinidades com alguns recentes comunitarismos portugueses, desde o neo-republicanismo místico de Agostinho da Silva ao monarquismo dito anarco-comunalista de algumas alas do Partido Popular Monárquico. Herzen, se também é responsável por cerrados ataques ideológicos ao czarismo, com a revista O Sino (Kolokol), editada em Londres, a partir de 1857- onde chega a proclamar que deve morrer o mundo actual, já que sufoca o homem novo e obstrui o caminho futuro. Viva o caos! Viva a morte! eis que acaba por considerar que é uma benção para a Rússia que a comuna rural nunca se tivesse desfeito, que a propriedade nunca tivesse tomado o lugar da propriedade comunal. Para ele, a Europa Ocidental seria uma reincarnação do Império Romano em decadência, enquanto os eslavos poderiam assumir-se como os bárbaros que a vão destruir, mas para a regenerar. E isto porque atribui, ao Ocidente, o liberalismo e considera que a Rússia é socialista e cristã por essência. Este estado de espírito atinge o clímax com o romancista Fiodor Dostoievski (1821-1881) que, tal como Fichte, passou de um anticzarismo libertário a um messianismo nacionalista, anti-católico, anti-judaico e anti-socialista que acabou por servir de inspiração doutrinária para o situacionismo dos Romanov.
Por nós, diremos que esta eslavofilia é o que de mais entranhadamente europeu tem o pensamento russo, porque se trata de um conservadorismo romântico quase messiânico e marcadamente gnóstico que, se teve os seus pioneiros no idealismo alemão, não deixou de se expandir tanto a leste como a oeste, do cabo da Roca aos Urales, das brumas escocesas às praias mediterrânicas. Com efeito, reduzir o Ocidente ao curso normal da história das ideias pós-cartesianas, segundo as conquistas da história à la française ou o modelo desenvolvimentista anglo-saxónico, tanto leva a repudiar, como não-europeu, o pensamento de um Agostinho da Silva como a taxar pejorativamente de asiático, o eslavofilismo. Com efeito, a maior parte da bibliografia europeia ocidental especializada na eslavofilia é marcada pelo etnocentrismo típico dos autores britânicos, norte-americanos e franceses que consideram as revoluções Inglesa, Americana e Francesa como uma espécie de fim da história, caindo quase sempre na tentação de proclamarem o subsolo filosófico que alimentou as ideologias demoliberais de tais revoluções como a única forma de descoberta da verdade. Esta forma de dogmatismo pretensamente antidogmática, fiel ao maquiavélico lema que considera que têm razão aqueles que vencem, não pode desconhecer que a Europa não se reduz apenas à filosofia da Reforma Protestante e da Maçonaria revolucionária, dado que tanto a perspectiva católica da Contra-Reforma como a tradição profunda da Igreja Ortodoxa são também pilares fundamentais da ideia de Europa. Excluir Roma e Bizâncio deste conjunto talvez seja não entender a identidade da casa comum europeia. Essa mentalidade de fim da história, sempre à procura dos pensamentos susceptíveis de enquadramento nos moldes daquilo que a opinião dominante considera o progresso, acaba por considerar como conservadores os anteriores adeptos do progressismo, derrotados pela ditadura dos factos. No fundo, trata-se do típico conformismo da chamada história dos vencedores, daquela perspectiva que anda sempre à procura da moda, esquecendo que só é moda aquilo que passa de moda que só é novo aquilo que se esqueceu, porque o antigo já foi moderno tal como o moderno há-de ser antigo.