sábado, 7 de julho de 2007

Justo Título, Teoria do

A vertente utilitarista do neo-liberalismo contesta frontalmente a existência de uma justiça distributiva e de uma justiça social. Para Robert Nozick, os princípios da justiça distributiva implicam que uma entidade qualquer se aproprie das acções de outras pessoas. Apoderar-se dos resultados do trabalho de alguém equivale a apoderar-se das suas horas e mandá-lo ocupar-se noutras actividades... implicam uma passagem da noção da propriedade de si mesmo, própria dos clássicos do liberalismo, para uma noção de direito de propriedade (parcial) sobre outras pessoas. Assim, defende a teoria do justo título (entitlement theory of justice). Porque, diferentemente das desorientadoras expressões da justiça distributiva e da justiça social, o que a justiça precisa é de especificar as regras para a correcta aquisição de títulos sobre bens, regras para a correcta transferência de títulos, e regras para a correcta rectificação de violações dos anteriores tipos de regras. Com efeito, considera que as coisas estão seladas com títulos e que dispor de coisas sobre as quais alguém tem um título equivale a dispor da própria pessoa titular. Um título é, assim, uma noção moral, uma esfera de direito, um âmbito de livre disposição que não deve ser invadido sem o consentimento de quem detém o título. Neste sentido, aquilo que o mesmo autor considera como as teorias tradicionais da justiça distributiva cometem um erro moral: o de ignorarem os títulos especiais que as pessoas podem legitimamente invocar face a bens concretos, autorizando medidas coactivas de expropriação seguidas de redistribuição de pertenças e, consequentemente, violando direitos individuais e quebrando barreiras morais, dado pressuporem a existência de uma agência central de distribuição de bens. Por nós, questionaremos, em defesa da tese clássica, aristotélico-tomista, se a distribuição originária, donde provêm os actuais títulos que garantem o statu quo, não será tão ou mais distributiva quanto a distribuição correctiva que um Estado supletivo, respeitando o princípio da subsidiariedade e as exigências da solidariedade, pode fazer em nome da comunidade. É evidente que todos os autores do neoliberalismo da família de Nozick partem do princípio que é o mercado que estabelece a justiça. Isto é, continuam a nível da sociedade imperfeita, da casa e do dono, sem atingirem a complexidade da polis. Segundo o mesmo autor as pertenças de uma pessoa são justas se tal pessoa tem um título relativamente a elas em virtude dos princípios da justiça referentes à aquisição e à transferência das pertenças ou em virtude do princípio da rectificação da injustiça (tal como vem especificado pelos dois primeiros princípios). Se as pertenças de cada pessoa são justas, então o conjunto total (a distribuição) de pertenças é justa.


Retirado de Respublica, JAM

Justo (De) Imperio Lusitanorum Asiatico, 1625

Obra de Frei Serafim de Freitas, onde se considera que o poder temporal ou político foi concedido por Deus, como autor da natureza, ao rei ou ao principe da república mediante a luz natural, por eleição ou transferência da comunidade, que, não podendo exercer por si mesma esse poder, se viu obrigada, atenta a imposição do direito natural, a conferi‑lo a um ou a mais, transferindo para o principe... para que dele dimanasse para os outros magistrados inferiores da república.

Retirado de Respublica, JAM

Justo centro

A procura do justo centro sempre foi a preocupação fundamental dos defensores do regime misto. Cícero identificava essa procura com a recta ratio, considerando o bom regime como uma mistura da libertas, do povo, da auctoritas, do Senado, e com a potestas, dos magistrados, salientando que o bom governo nasce da reunião dessas três formas. A potestas dá-nos o amor paternal; os grandes, o sábio conselho; o povo, a liberdade.

Justo centro e recta razão no direito natural, 137, 964

Retirado de Respublica, JAM

Justificação, Literatura de

Segundo Lasswell e Kaplan, as maior parte dos escritos políticos não se preocupam com a investigação política, mas apenas com a justificação das estruturas políticas, existentes ou propostas. Neste sentido, equivalem às derivações de Pareto, os raciocínios e as teorias que socialmente se elaboram para darem razão aos resíduos.

Retirado de Respublica, JAM

Justiça

A justiça sempre foi considerada como o fim da polis, como o princípio da ordem, como o bem político por excelência, conforme as teses de Aristóteles. Mais recentemente, John Rawls considera-a a primeira virtude das instituições sociais, algo que está para a política como a verdade está para o pensamento.

Justiça como fim do governo OSORIO, 125, 878

Justiça comutativa

O mesmo que justiça sinalagmática. A que marca as relaçaoes de cada parte com cada parte, sem directa intervenção do todo. Traduz o que cada um deve ao outro e é marcada pela igualdade relativa, pela proporção geométrica, obedecendo ao preceito do neminem laedere. Aquela que não atende à qualidade das pessoas que intervêm na comutação. Acontece nas trocas voluntárias ou contratuais, onde à prestação corresponde a contraprestação, comparando-se o valor das coisas, bem como nas trocas involuntárias ou delituais, onde ao dano produzido deve corresponder uma indemnização, visando restituir ou devolver um bem alheio, ou restituir o equivalente, pela reparação (no caso da danificação), ou pela indemnização (no caso de destruição).

Justiça distributiva

A que marca a relação descendente do todo para com as partes. Tem a ver com o que o todo deve a cada um, a cada uma das parcelas que o integram. Tem a ver com o preceito do suum cuique tribuere, o dar a cada um o que lhe pertence, o dar a cada um segundo o seu mérito, sendo marcada pela proporção geométrica, com o princípio do a cada um conforme as suas necessidades.

Justiça geral ou social

A que marca a relação ascendente da parte para com o todo. Tem a ver com o que cada um deve ao todo, com o preceito do honeste vivere, como o de cada um, segundo as suas possibilidades.

Retirado de Respublica, JAM

Justa Acclamação do Sereníssimo Rey de Portugal, D. João o IV, 1644

De Francisco Vaz Gouveia, que tem como subtítulo. Tratado Analytico dividido em tres partes, ordenado e divulgado em nome do mesmo Rey em justificação da sua acção. Considerado pelo pombalismo como destrutivo da união cristã. Conforme o nosso jurista da Restauração, o poder régio, civil ou político "consiste e está em toda a República, Povo ou Comunidade", dado que a sujeição civil começou depois do pecado original, até porque foi Caim que fundou a cidade, "que é o mesmo que Comunidade e República". Considera que "o poder político, e civil de reinar, tomado absolutamente, é dado e concedido imediatamente por Deus nosso Senhor, como Autor da natureza; não por concessão e instituição particular, senão pela mercê da criação dos homens, que em consequência traz haver entre eles este poder para se poderem conservar". Assim, os homens "de sua natureza são propensos a terem comunicação entre si, vivendo juntos, e sendo políticos e sociáveis". E "para viverem juntos em República, e Povo que constitui como um corpo". Para ele, o poder "está em toda a república, Povo ou Comunidade" porque procede da "razão natural da conservação" que "per direito natural não está determinado, em que este princípio (o da conservação) se funda, não está determinado o modo de governar; nem por Monarquia, sendo por uma pessoa; nem por Aristocracia, sendo muitos". Para Velasco Gouveia, na senda de Suarez, Navarro, Molina e Belarmino, que cita, os reis têm o poder de Deus, "não recebido imediatamente dele, senão mediatamente pelo meio dos povos, que imediatamente lho transferem, sendo criado e instituído por Deus". A partir destas bases conclui o seguinte: ‑" o poder régio dos Reis está originariamente nos Povos, e Repúblicas e que deles o recebem imediatamente" ‑ "o poder que os povos transferiram a princípio nos Reis para os governarem; não foi por translação total; antes ficando‑lhe sempre habitualmente, para o poderem reassumir nos casos, em que precisamente lhe fosse necessário para sua conservação" ou "defensão natural" ‑ "os Reinos e Povos deles têm poder para negarem a obediência aos reis intrusos sem título, ou tiranos no governo e os privarem. Submetendo‑se a quem tiver direito legítimo de reinar" ‑ "regularmente... podem os Reinos e povos por si sós, sem dependência dos sumos Pontífices e sem preceder aprovação sua, privar deles aos Reis e aclamar e pôr outro" e "o podem fazer sem aprovação dos Papas salvo quando por ser necessário precisamente ao bem espiritual deles, o fizerem os Sumos Pontífices, por faltar nos Reinos o poder temporal para isso" ; assim, considera que "o Reino de Portugal e Algarves é próprio dos Reis deles, sem reconhecerem Imperador, nem outro superior algum temporal; e pelo conseguinte, o mesmo Reino, e Povos dele, podem... privar aos Reis injustos e intrusos e aclamar aos que forem justos e legítimos sucessores; sem dependência alguma, nem do Papa, nem do Imperador"; ‑ "o Reyno tinha poder legítimo para validamente por si só privar a el Rei Católico de Castela e para reconhecer por Rei o Sereníssimo D. João o IV, que fez em dito primeiro dia de Dezembro de 640 e no das Cortes de Janeiro de 641". Seria, pois, o povo que, através de um pacto transferiria o poder para os reis: "a instituição dos Reis, e a translação do poder régio neles, se fez entre os homens por modo do pacto; transferindo neles o poder, com pacto, e condição de os governarem, e administrarem com justiça, e tratarem da defensão, e conservação, e aumento dos próprios Reinos". Contudo, os povos concedem aos reis os poderes in perpetuum e "não o podem reassumir, salvo em certos casos, e com certas condições e circunstâncias". Aceita a própria tese de Mariana, considerando que pode matar‑se o tirano: "não somente a republica, e o reyno, mas cada hum dos particulares", porque (segundo S. Tomás), "onde o Sancto, com Marco Tullio approva por esta cabeça, a morte que derão ao Emperador Julio Cesar, que com tyrania occupava a Republica Romana"(p. 38).

Retirado de Respublica, JAM

Jusracionalismo

Com os jusracionalistas laicizantes da chamada Escola do direito natural e das gentes, com Grócio, Pufendorf, Barbeyrac e Burlamaqui, o direito natural passa a visionar-se como um conjunto de normas dimanadas da razão humana e exigidas pela própria recta ratio, normas perspectivadas como imutáveis no espaço e no tempo e nas quais devem fundamentar-se todas as regras do direito positivo. A natureza humana deixa assim de assumir-se como um dever-ser, reduzindo-se a um simples facto, enquanto a ideia de direito passa a fundar-se apenas numa consideração empírica (v. g. a ideia de apetite de sociedade de Grócio), desenhando-se, deste modo, o perfil do direito natural moderno que, segundo Fassò, é marcado pela laicidade, pelo racionalismo, pelo individualismo e pelo subjectivismo. É o tal direito verdadeiro e justo mesmo que Deus não exista, ou que não cuide das coisas humanas. Porque Deus também não pode fazer com que dois mais dois deixem de ser quatro, conforme a célebre frase de Grócio, repetindo um dos argumentos usados pelo intelectualismo escolástico na sua polémica contra o voluntarismo franciscano. Surge assim, no plano das concepções jurídicas, um processo equivalente à teoria do conhecimento de Leibniz e às leis da física enunciadas por Galileu, num movimento que visa, sobretudo, garantir a independência do direito face à teologia. Este poder da razão, de cada um poder descobrir as regras do justo, aconteceu porque se considera que a razão individual é capaz de fugir à contingência e atingir a ordem da natureza, bastando, para tanto, que qualquer homem se volte sobre si mesmo e que, iluminado pela razão, detecte o justo e o verdadeiro para todos os tempos e todos os lugares. Vai assim laicizar-se o transcendente e a antítese em torno da qual passa a girar o direito natural deixa de ser a tensão entre a cidade dos homens e a cidade de Deus, mas antes a que opõe o direito positivo e a razão. Surge, deste modo, um direito natural independente de qualquer fé religiosa, uma medida ou um padrão para o direito positivo que o homem, na sua racional individualidade, poderia determinar. Acresce que os jusracionalistas desenvolvem os princípios do direito natural de forma pormenorizada, fazendo classificações do direito, em géneros e espécies. Chegam mesmo a criar, para cada ramo do direito, códigos idênticos aos actuais códigos de direito positivo. Na verdade, quase todos procuram a elaboração de um código da razão, através da elaboração de sínteses sistemáticas acreditando na construção jurídica, principalmente na codificação racional, como elemento reformador dos homens e das sociedades. Os próprios tratados e manuais de ensino desenvolvem-se ao estilo das codificações com pensamentos seccionados e numerados em formas de artigos, por vezes, titulados, com um esquema geral de sistematização, com subsecções, secções, capítulos, partes e livros, como se cada pensador fosse um legislador com pretensões de eternidade. É, aliás, contra este modelo de direito natural que reage a Escola Histórica do Direito, assumindo um conflito entre a razão e a história. Com efeito, o jusracionalismo gera um direito natural que, parecendo, e aparecendo, como abstracto, é, contudo, demasiado concreto. Porque, se eleva à categoria apriorística uma série de máximas, talvez elas não passem de meras induções empíricas, fundadas na observação e na experiência, bem como na análise das regularidades, dado entender-se o geral como aquilo que é comum a vários objectos, à maneira das ciências físicas. Esta ilusão de só poder conhecer-se aquilo que susceptível de ser medido ou enquadrado nas regularidades acaba, aliás, por afastar do campo da observação aquelas irregularidades e aquelas anormalidades que, afinal, talvez sejam o normal da vida activa daqueles seres que nunca se repetem. Deste modo, se exclui o singular e a diferença, na procura de um conceito de lei demasiadamente restritivo. Por outras palavras, aqueles princípios que se pretendem eternos e derivados da razão, não passam de conceitos empíricos e condicionados. O direito natural do jusracionalismo normativista tem a pretensão de assumir-se como um sistema ideal, independente das circunstâncias. Deste modo, deixa de haver, como sempre defenderam os clássicos, a possibilidade de uma variedade de regimes legítimos, porque a legitimidade, transformando-se em mera forma não é fecundada pela matéria, pelas circunstâncias do tempo e do lugar. Por outras palavras, procura-se uma solução universal capazd e aplicar-se universalmente, gerando-se aqueles doutrinarismos ou especulacionismos, concebidos quase matematicamente. Aqueles modelos que levam Almada Negreiros a proclamar que as frase que hão-de salvar a humanidade já estão todas escritas, apesar de continuar a ser necessário salvar a humanidade.

Outros jusracionalistas são Johann Gottlieb Heineccius ou Heinecke (1681-1741), próximo de Pufendorf; Henrique de Cocceji (1644-1719), sucessor do mesmo Pufendorf em Heidelberg; Samuel Cocceji (1679-1755), filho de Henrique e alto dignitário prussiano no tempo de Frederico II, O Grande, que foi autor do primeiro projecto de codificação prussiano, o Projekt des Corporis Iuris Fridericiani, de 1749; o austríaco Karl Anton von Martini (1726-1800), ligado à administração de Maria Teresa e de José II, autor do Allgemeines bürgerlich Gesetzbuch für die deutsches Erblãnder, de 1811; e os suíços Emmerich de Vattel (1714-1767); Jean Barbeyrac (1674-1744), professor em Lausanne e Berlim; e Jean-Jacques Burlamaqui (1694-1748), professor em Genebra.


Retirado de Respublica, JAM

Jusnaturalismo Católico Renascentista

A teoria política do jusnaturalismo católico renascentista, que marcou Portugal, obedece a cinco ideias básicas: a origem democrática do poder; o princípio da representação política; a perspectiva pluralista ou poliárquica; e a abstractização do poder. ìOrigem democrática do poder.

Origem democrática do poder

Primeiro, na senda da prática dos factores democráticos e das teorias da primeira escolástica, advoga a origem democrática do poder, onde a lex regia aparece como o mito regulador da comunidade política, com o consequente dualismo rex/ regnum, isto é, com a consideração do povo como entidade distinta do rei e a inevitável concepção de um contrato de transferência do poder. A segunda ideia marcante é a de representação política. Com efeito, há em toda a escolástica política uma ideia pactista ou consensualista, visionando-se um pacto de sujeição que explica provir o poder do rei de um pacto estabelecido entre este e o reino. O rei tem poder, mas só a representação global do reino, a conjugação do rei com as Cortes, tem plena autoridade. Esta democracia não se produzia, como o vão antever os iluministas, num vazio social ou através de uma abstracção, dado que, como assinala Luis Legaz y Lacambra, lo essencial es que los pactos se establecen dentro de un orden social, en cuya naturalidad se cree. Deste modo, no pacto entre o príncipe e o reino, este é visto como um todo, unitariamente considerado, e não como o entende o radical individualismo religioso da Reforma. Trata-se, contudo, de uma democracia que, em vez da representação quantitativa da democracia contemporânea, marcada pelo sufrágio universal, adopta as teses da representação qualitativa, onde o povo é representado pela sua valentior pars, podendo delegar o poder num príncipe, como o subscreve Marsílio de Pádua (1275-1342) no seu Defensor Pacis, de 1324. A este respeito, convém recordar que a dinastia de Avis fora instaurada na consequência da crise de 1383-1385, onde, se houve Aljubarrota e a aliança com os ingleses, também não deixou de existir o facto político das Cortes de Coimbra de 1385, onde o rei foi eleito per hunida comcordança de todollos gramdes e comuu poboo, em nome do princípio da lex regia e do Q. O. T., do quod omnes tangit ab omnibus approbari debet, o porque é direito que às coisas que a todos pertencem e de que todos tenham carrego sejam a elo chamados, conforme palavras das mesmas Cortes.

Estado de Direito

A ideia contemporânea de Estado de Direito, entendida como aquela organização do político que tem, no direito, o respectivo fundamento e onde o exercício do mesmo poder está processualizado e limitado pelas vias jurídicas, só a partir dos finais do século XIX ganhou preponderância, tanto através da expressão inglesa rule of law, impropriamente traduzida por império da lei, como da expressão alemã Rechtstaat, enquanto o contrário do Machtstaat. De qualquer maneira, o Estado de Direito é sempre algo mais que o mero Estado que obedece ao primauté de la loi ou ao mero princípio da legalidade, conforme a perspectiva reducionista das escolas positivistas. A perspectiva positivista, que tem profundas origens em certo voluntarismo medieval, sempre defendeu a lei como um produto da voluntas de uma determinada potestas e não como a resultante de uma auctoritas, considerando mesmo que o próprio poder divino derivaria da vontade de Deus e não da respectiva inteligência, como defendia o tomismo. Para o positivismo de sempre tanto é lei o que resulta de uma vontade geral como o que é decidido por um executivo. Logo, tanto pôde subscrever o brocardo do despotismo ministerial, para quem quod princeps placuit legis habet vigorem, como aceitou o princípio soberanista de que oboedientia facit imperantem, considerando o poder soberano como um circuito directo de comando entre um superior e um conjunto de inferiores, colocados em estado de sujeição. Quando dizemos Estado de Direito não fazemos assim a leitura dominante do estatismo e do positivismo. Não reduzimos o direito à lei, a law aos acts. Porque, como dizia Platão em Nomoi, a legislação e o estabelecimento de uma ordem política são os meios mais perfeitos que pode usar o mundo para governar segundo a virtude e o direito governa aqueles que governam. Consideramos, como Cícero, que uma república é uma multidão unida pelo consenso do direito. Pelo que, seguindo agora Dante, aquele que procura o bem da república procura o direito, do mesmo modo como aquele que se proponha o fim do direito não pode fazê-lo sem o direito. Mais: que obter o fim do direito sem ser pelos meios do direito seria como dizer que o produto do roubo constitui uma esmola. Estado de Direito significa, portanto, passar-se da potentia à potestas, do mero poder físico, daquilo que cada um pode fazer, ao poder juridificado ou institucionalizado, aquilo que cada um tem a permissão de fazer. Significa procurar-se a concentração dessas duas tendências numa instituição que seja o maior dos poderes, que tenha a máxima potentia, e a maior das potestas. Contudo, esse objecto perfeito, porque apenas tem fundamento no Direito, não pode sujeitar-se a uma espécie de autolimitação. De uma forma mais concreta, só um poder consegue travar outro poder, pelo que tem de haver divisão e separação de poderes, embora sempre se reconheça uma inevitável contradição ontológica: porque a potestas pode alcançar-se através da potentia; porque a potestas exige potentia. Mas a justiça também precisa da força para não ser impotente... De qualquer maneira, importa salientar, como, depois, o faz António Ribeiro dos Santos, que em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei. Tudo o mais é arbitrário; e do arbítrio nasce logo necessariamente o despotismo. Pode dizer-se que no nosso renascentismo foi dominante a ideia de que o príncipe estava submetido ao direito e, consequentemente, à sua própria lei, não se aceitando aquele princípio absolutista, segundo o qual princeps a legibus solutus. Neste sentido, já o nosso D. João II proclamava que se o soberano he senhor das leis, logo se fazia servo delas pois lhes primeiro obedecia. Um dos princípios reveladores da ideia de Estado de Direito está na tradicional prática do contencioso administrativo. A este respeito, diremos que pelo menos desde os tempos de D. Afonso II e de D. Dinis que a Cúria conhecia de litígios entre o rei e os vassalos. Com D. Dinis já aparece, para executar essa missão, um ouvidor dos feitos do rei. Com D. Afonso IV surgem dois ouvidores para as causas especialmente da coroa. Com D. Pedro I são os juízes do aver delRei, que tinham todos os poderes nos assuntos que não implicassem graça. Nas Ordenações Afonsinas conserva-se um juiz dos feitos do rei na casa da justiça (I, VI), mantendo-se a situação nas Ordenações Manuelinas (I, VII). O mesmo D. João II, no preâmbulo das Cortes de Évora de 1481-1482 dizia: segundo dicto do nosso Remydor jezu christo non viemos para quebrantar as leis, nem o que devemos, mas ante pera o muy jnteiramente comprir e guardar: pero segundo a variedade e sobcessos dos tempos convem aos Reis e prinçipes de Santa e virtuosa entençam mudar, limitar e declarar, ader e interpretar as constituições e posiçõees humanas por as causas urgentes e bem e publico proveito. por tall que as leis sempre aiam com vigor e força de servir o fim nunca mudavel e causa finnal do direito. o qual he rrefrear e limitar os apititos desordenados sob iusta e direita regra. O que todo se deve fazer com grande madureza e deliberaçom dos prodentes. Um episódio narrado por Garcia de Resende na Chronica dos Valerosos, e Insignes Feitos del Rey Dom Ioam II, é revelador dessa autenticidade: Estando el Rey hum dia com desembargadores sobre um feyto seu, depois de lido, e a casa despejada pera darem seus votos, disse o Doutor Nuno Gonçalves: "Senhor, nos não podemos aquy votar neste feyto; perguntou el Rey, porque; disse o doutor: Porque vossa Alteza he parte nelle, e está presente. El Rey levamtouse em pe, avendo disso desprazer, e disselhe: Isso me aveis vos de dizer? como em mim se entende isso, se eu sam a mesma justiça, como ey de ser parte. E el Rey com payxam pasceou hum pouco polla casa sem falar nada, e tornou logo a mesa, e encostado nella em pe disse: Doutor, eu vos agardeço muyto o que me dissestes, e fizestelo como muyto bom homem que sois. E a mim me parece assi como a vos, que não devo de ser presente, e por isso me vou, e todos julgai segundo vossas consciencias: e sahiose logo, e deixouos sos. Este episódio justamente valorizado pelo grande filósofo do direito contemporâneo, o brasileiro Miguel Reale, em Cristianismo e Razão de Estado no Renascimento Lusíada, e depois retomado por Martim de Albuquerque, constitui a demonstração que o poder do rei não pode absorver a justiça, à qual melhor podem aceder as consciências dos justos julgadores.

Pluralismo

A terceira ideia marcante é a visão pluralista do político. Que leva à perspectiva de uma república ajuntada de muitos e desuairados estados sob uma cabeça. senhor e prinçipe, para utilizarmos as palavras de Francisco de Melo na oração das Cortes de 1535. Aliás, foi com São Tomás de Aquino que se considerou que o reino ou cidade não era um simpliciter unum nem uma unidade substancial, mas apenas um totum ordinis, uma mera unidade de relação, uma entidade englobante de várias comunidades, uma unidade na diversidade, apenas marcada por um fim comum. É uma república maior feita de repúblicas menores que se agregam ou confederam, através dos diversos estamentos num corpo uno, numa sociedade perfeita.

Abstractização do poder

A quarta ideia é a da abstractização do poder. Sobre a matéria, salientaremos que na Idade Média houve uma procura teórica conseguida da operação jurídica da institucionalização do poder, da transferência do suporte do poder da pessoa dos governantes para uma entidade abstracta e ideal, independente das pessoas dos governantes, para uma entidade dotada de unidade, de continuidade, de poder fundado e limitado pelo direito. Surgiu a instituição que, segundo as palavras de Georges Burdeau, é uma empresa ao serviço de uma ideia, organizada de tal modo que, achando-se a ideia incorporada na empresa, esta dispõe de uma duração e de um poder superiores aos dos indivíduos por intermédio dos quais actua, permitindo ao grupo que continue, segundo uma técnica mais aperfeiçoada, a procura do bem comum; assegura uma coesão mais estreita entre a actividade dos governantes e o esforço pedido aos governados; torna mais flexível a influência da ideia de direito sobre os comportamentos sociais e, com isso, constitui. Dentro da abstractização do poder, importa salientar que o nosso Renascimento já há uma nítida distinção entre o rei enquanto homem particular e o rei enquanto personna communis. Ou, como dizia o nosso Infante D. Pedro na Virtuosa Benfeitoria, uma coisa é o príncipe singularmente considerado e outra, o príncipe com toda a comunidade da sua terra. Isto é, a abstracção da república, coroa, reino surgiu na nossa Idade Média para designar uma entidade política, representativa da comunidade, juridicamente construída e distinta da pessoa do Rei. A ideia de coroa, enquanto entidade dotada de significação política e metafísica, implicando, como salienta Martim de Albuquerque, um alto grau de abstracção e a ideia de continuidade, constitui um dos elementos precursores da abstracção estadualista. Como salientava Maurice Hauriou, a formação do Estado foi preparada pela ideia de coroa que revestia a mesma concepção de uma autoridade abstracta e a mesma incarnação de um fim numa instituição encarregada de o executar. Outra ponte para a abstractização estatal deram-na os glosadores quando, sem falarem em pessoa moral, pessoa colectiva ou persona ficta, começam a entificar determinadas multiplicidades, através de conceitos como os de universitas, societas e communitas. Retomam, por exemplo, a figura privatística romana da universitas, que permitia transformar a multiplicidade de indivíduos numa unidade susceptível de ter um representante e um cofre comum, e, como tal, qualificam certas unidades, como as comunidades religiosas ou profissionais, reconduzindo-as a uma universitas civium, a qual seria qualitativamente diferente das pessoas ou coisas dela integrantes, pelo facto de possuir um estatuto jurídico próprio. Fazem o mesmo relativamente ao conceito romano de societas, considerando esta como uma associação de duas ou mais pessoas, tendo em vista a obtenção de uma determinada vantagem, em sentido económico ou, mais restritamente, comercial.

Comunidade

O conceito mais próximo da entidade política é o de communitas, onde o elemento essencial é a existência, não de um contrato, mas de uma acção comum. Com o termo vão, qualificar uma colectividade urbana ou rural, instalada num determinado lugar, aproximando-se assim da expressão koinonia, com que Aristóteles qualificava uma polis. Contudo, o conceito mais retintamente político vai ser o de civitas, entendida à maneira de Cícero, como um grupo de homens instalado num determinado lugar e reunido pelo consensus iuris. A civitas ou regnum, como profusamente o dizem São Tomás de Aquino, Ptolomeu de Luca, Marsílio de Pádua ou Egídio Romano, aparece já como um conjunto geo-humano, que se encontra organizado nos planos jurídico e político, dado ter o mesmo fim e se encontrar sob a mesma autoridade.

Corpus mysticum

A terceira ideia, então desenvolvida, mais próxima do que será o conceito jurídico de pessoa moral ou colectiva, é dada pela ligação do conceito jurídico de universitas, também dita communitas, corpus ou collegium, ao conceito teológico de de corpus mysticum, entendido como realidade existente, mas não sensível. Deste modo, o corpo político, sendo marcado por um fim, sendo um totus ordinis, precisa de um tutor ou de um procurador. Neste sentido, não faltaram teóricos a considerarem a república como um menor, um pupillus, onde o rei se assumia como tutor regni. Este dualismo entre o rei e o reino, onde, como referia Bartolomeu de las Casas, o príncipe até é visto como o marido da república, mostra como, entre as duas entidades, há, ao mesmo tempo, distinção e união. Só mais tarde se passa do dualismo ao monismo, quando emergem as ideias de monarquia, soberania e Estado, surgindo a personalidade única do Estado, quando domina um organicismo, monisticamente entendido, considerando-se que não pode existir uma sociedade civil ou um povo que se baseiem apenas em si mesmos, quando apenas se admite uma única persona civitatis, conforme as teses de Hobbes, onde, muito geometricamente se fala numa única pessoa cuja vontade, em virtude dos pactos contraídos reciprocamente por muitos indivíduos deve considerar-se a vontade de todos estes indivíduos. É que, sendo a vontade de todos reduzida a uma só, ela pode ser considerada como uma única pessoa distinguível e reconhecível com um único nome por todos os indivíduos.

Distinção entre república e principado

Em segundo lugar, surge uma clara distinção entre, por um lado, a respublica ou comunidade e, por outro, o principado ou governança da comunidade, como lhe chamava o Infante D. Pedro. O Estado aparece como a ligação entre o príncipe e toda a comunidade da sua terra, entre o rei e o povo comum, onde o mesmo principado tanto tem um imperium ou senhorio, como também é visto como um magistratus com regimentos. Consolidou-se, assim, a separação entre o doméstico e o político, inventando-se o príncipe para que deixe de haver um dono, para que deixe de haver confusão entre propriedade e poder, para que os homens deixem de ser coisas. É que, no senhorialismo, o dono, o proprietário governa, tornou-se num poder juridificado, numa força tornada direito, onde o direito foi politizado ao mesmo tempo que privatizado. Mas a doutrina política moderna, se foi buscar a abstractização ao direito romano, não deixou de recorrer ao direito senhorial, para fazer a ligação entre o direito e o poder. Conservou-se, deste modo, a ligação entre o direito e o poder, inventada pelo feudalismo, mas de forma invertida: em vez da politização do direito, como fora timbre do feudalismo, os autores modernos vão juridificar o poder e, deste modo, sujeitar o poder à lei, e em vez de privatizar o direito, vão civilizá-lo. Vão submeter o poder ao direito e fazer reciprocamente do direito um poder Dá-se, portanto, a institucionalização do poder, tentando-se que cada homem deixe de obedecer a outro homem para passar a obedecer a uma abstracção. Porque, como depois dirá Pufendorf, os seres morais não são coisas como os seres físicos, não se possuem senão pela instituição.

Bem comum.

A quinta ideia típica da teoria política do jusnaturalismo católico renascentista está na perspectiva teleológica com que passa a ser encarada a organização política, considerando-se a existência daquilo que, depois, serão os fins do Estado, dado que as palavras fundamentais de então são o bem comum e a justiça. Fala-se, assim, numa comunidade marcada pelo fim supremo do bem comum, da prol comunal, conforme expressão do Regimento dos Oficiais das Cidades, Vilas e Lugares, de 1502. No bem commum e conservaçam dos Reinos, conforme as Allegações de Direito, a favor de D. Catarina de 1579. Já quanto à justiça, importa assinalar que esse valor sempre foi considerado como o fundamento e o fim da governança durante a Idade Média. Uma justiça dita pelas Partidas (3, 12) como a virtud por que se mantiene el mundo, faziendo bevir a cada uno en paz segund su estado, a sabor de si, e teniéndose por abandado de lo que ha. Uma ideia globalizante e totalizante de justiça que reúnia os actuais conceitos de segurança e defesa. A Justiça existia, por um lado, contra los enemigos que son dentro del reyno, fazen mal en la tierra, robando e forçando a los omes lo suyo sin derecho (... ) contra estos deben ser los reyes e aquellos que han de judgar e de complir la justicia por ellos (2, 23, 2) e, por outro, contra los enemigos que son de fuera del reyno que los quierem tomar por fuerça su tierra e amparalles lo que con derecho deven aver (2, 23, 1). O rei medieval e os seus oficiais bastavam-se com o fim da justiça para toda a respectiva missão, sendo considerados como juízes. Voltando às Partidas, podemos ler que vicarios de Dios son los reyes, cada uno en sus Reinos, puestos sobre las gentes para mantenerlos em Justicia e en verdad quanto en lo temporal (... ) El rey es puesto en la tierra en lugar de Dios para complir Justicia e dar a cada uno su derecho (2, 1, 5). O ofício do rei era pois fazer justiça. Aliás, de tal maneira o regimento, ou governação, se reduzia à realização da justiça que as Ordenações, na parte orgânica, são quase reuzidas a disposições judiciais, configurando o modelo do chamado Estado-Justiça Contudo, a partir dos séculos XV e XVI, a missão do Rei alarga-se e complexifica-se. Com a expansão, ele passa também a senhor do comércio e da navegação, tendo de alargar a respectiva missão a matérias económicas e de comunicações, as quais, ao contrário dos impostos, já ultrapassam a mera justiça. Tanto na expansão como no próprio reino urge também tratar da assistência e da educação. Isto é, a coroa ultrapassa os limites da mera justiça e esse novo universo, esse espaço maior da actuação do rei, já não cabe no mero regimento, já é governo, já é polícia. As anteriores matérias tributários largam do mesmo modo o campo da justiça, constituindo os negócios da fazenda, ao mesmo tempo que os assuntos da segurança e da defesa se instituem como negócios da guerra, dado já não bastarem os anteriores defensores, a nobreza, exigindo-se não só uma intervenção do centro político como também dos próprios povos organizados nas câmaras. A organização do político consequente a todo este manancial de teorização renascentista é necessariamente híbrida, pelo que as qualificações que o modelo tem recebido rondam também o contraditório. Para uns, haveria um absolutismo com limites, um absolutismo temperado pelos teólogos, uma visão teológica do poder. Como dizia Tierno Galván, era um absolutismo tradicional de remota base popular y eticidad plena, isto é, um absolutismo moderado, ainda não totalmente liberto das vinculações que o jusnaturalismo impunha ao poder soberano. Já J. Vicens Vives chama-lhe monarquia autoritária, considerando, no entanto, que o vocábulo exacto seria monarquia preeminencial. Talvez mais preciso tenha sido Erasmo que falava numa monarquia limitada, controlada e temperada pela aristocracia e pela democracia, onde os diversos elementos de equilibram uns aos outros. Era a perspectiva de Cícero e de São Tomás, tal como, aliás, será retomada por Montesquieu, Constant e Tocqueville. Seria, com efeito, ilusório qualificar o regime desse renascentismo segundo as fórmulas da chancelaria que, pelo menos desde D. Fernando, atribuíam ao rei um poder absoluto, quando diziam que a emissão de uma lei régia se fazia de nossa ciência e poder absoluto, tal como já antes, em D. Pedro I, se invocava o de nossa livre vontade e certa ciência. Assim se compreende que já D. João I invoque: queremos e mandamos, estabelecemos e ordenamos de nosso moto próprio, certa sabedoria, absoluto e plenário poder. Seria pouco adequado concluirmos que esse poder formalmente absoluto era o mesmo que poder absolutista, entendido como um poder a legibus solutus. Com efeito, no processo de liquidação dos poderes periféricos por efeito do soberanismo, houve inúmeras situações onde os mesmos, em lugar de resistirem, cooperaram com o centro político, através de uma conciliação de interesses entre o rei, que os quis regalizar para diluir, e o clero e a nobreza, que cooperaram para obter o controlo do centro. A existência de um lugar onde se acumula o poder, de um centro político, não significa que o mesmo poder não seja distribuído. Mesmo o Príncipe Perfeito não deixou de o distribuir senhorialmente, embora o tenha feito de forma diversa da utilizada por D. Afonso V.

Retirado de Respublica, JAM

Juristas e Política

O Estado Moderno da Europa Ocidental é especialmente conformado pelos legistas, adeptos dos renascimento do direito romano que se aliaram aos reis para a chamada centralização do poder. Em Portugal foi, aliás, simbólica, a actuação de João das Regras, na fundação da Segunda dinastia. Segue-se a reformulação de 1640, onde tiveram papel de destaque os chamados juristas da Restauração. Com efeito, também entre nós, a revolução da coisa pública no sentido do racional foi sobretudo obra de juristas. Com a Revolução Francesas voltam a dominar os juristas, agora com papel de destaque para os advogados. Como salienta Weber, desde essa época, o advogado moderno e a democracia estão ligados, porque a empresa política dirigida por partidos não passa, na verdade, de uma empresa de interesses, onde o advogado defende os interesses daqueles que os procuram, distinguindo-se do funcionário, que não deve estar dependente de partes (Ciência e Política, p. 78). Entre nós, com o vintismo, o cartismo e o setembrismo, o advogado não é o tipo de jurista dominante, sendo particularmente influente o magistrado, em tensão com o militar que qualifica o primeiro como o pertencendo ao partido dos becas ou dos rábulas. Assim o eram Manuel Fernandes Tomás, José da Silva Carvalho, Mouzinho da Silveira ou Costa Cabral. Com a Regeneração, o jurista passou a ter de conviver com a liderança de militares e de engenheiros, acabando por dominar o engenheiro militar Fontes Pereira de Melo. Só com o rotativismo regressa a predominância do jurista, mas com a primeira República, eis o jurista a Ter de rivalizar com o médico. No Estado Novo, regressa o jurista, mas agora como professor de direito. E mesmo no Abrilismo, com o predomínio do jurista constituinte...

Retirado de Respublica, JAM

Lectures on Jurisprudence, 1832

Na base do pensamento de John Austin está o entendimento da lei como regra, como ordem do soberano, como comando, como ordem dada por um superior a um inferior, o direito posto por um superior a um inferior, e, consequentemente, o entendimento da jurisprudência, das decisões dos tribunais, como um conjunto de formulações dos agentes do soberano, ao mesmo tempo que visiona o costume, como algo que é apenas tolerado pelo mesmo soberano. O direito é assim concebido como uma regra estabelecida para governo de um ser inteligente por um ser inteligente que tem poder sobre ele, considerando-se que o fundamento do mesmo está na eficácia da regra, resultante da conjugação de um elemento activo, o soberano, com um elemento passivo, a receptividade de um sujeito à obediência. Nestes termos, refere o direito natural como mera categoria metafísica sem importância jurídica. A partir destes pressupostos, inspira a chamada escola analítica da jurisprudência que concebe a ciência do direito como mero processo de classificação dos dados legais e de análise das instituições como elas na prática são e não como elas deveriam ser. As leis não contêm qualquer elemento de dever-ser, não passam, como observa Kelsen a respeito do mesmo autor, de uma ordem, da expressão da vontade de um indivíduo dirigida à conduta de outro indivíduo. Assume-se assim uma teoria estritamente imperativa do direito, identificando-o com o mandato do soberano. Segundo as próprias palavras de Austin, every positive law, or every law strictly so called, is a direct or circuitous command of a monarch or sovereign number in the caracther of political superior: that us to sy, a direct or circuitous command of a monarch or sovereign number to a person or persons in a state of subjection to its author. And beeing a command (and therefore flowing from a determinate source); every positive law is a law proper, or a law properly so called. A escola por ele fundada, paralela à Allgemeine Rechtslehre, desencadeia um método analítico-formal que vai levar a um efectivo desenvolvimento técnico do direito anglo-saxónico, opondo-se ao fundo tradicional do common law.

Retirado de Respublica, JAM

Jupiter, Mars, Quirinus (1938)

Obra de Georges Dumézil (1898-1986), com o subtítulo: Essai sur la Concéption Indo-Européenne de la Societé et les Origines de Rome, Paris, NRF, 1938, onde se considera que o entendimento de qualquer organização política implica o entendimento da relação entre o poder político o poder espiritual, o poder administrativo e o poder económico. Porque a civilização indo-europeia teria sido, desde sempre, marcada pela tripartição do poder entre o saber religioso — Júpiter —, o poder militar — Marte — e a produção de bens — Quirinus. Porque todos os povos têm necessidade de serem comandados, defendidos e alimentados. Três funçöes que na natureza são equiparáveis ao cérebro, aos músculos e à boca. Contudo, só os povos europeus é que transformaram essas três necessidades vitais numa concepção do mundo, assinalando três funçöes à política: soberania, defesa e produção. Fez-se uma transposição da prática instintiva das três funções para uma reflexão (... ) sobre a sua ordenação, agrupando-as numa filosofia implícita ou explícita que penetra todas as províncias do pensamento.

Retirado de Respublica, JAM

Junta Provisional – Governo da (1820)

Depois das revoltas de 20 de Agosto de 1820, no Porto, e de 15 de Setembro seguinte, em Lisboa, eis que as forças revoltosas se unificam em 27 de Setembro, com a fusão resultante do encontro de Alcobaça, constituindo duas juntas provisionais, uma para o governo e outra para a preparação das Cortes. São estas juntas que vão preparar as eleições, mas vivem em equilíbrio instável face à luta entre gradualistas, dominados pelo partido dos magistrados, e radicais, dominados pelo partido dos militares, sofrendo forte abalo com o golpe da martinhada, de 11 de Novembro, e o contra-golpe gradualista de 17 de Novembro.

Retirado de Respublica, JAM

Jugoslávia (Jugoslavija)

Grande guerra de 1914-1918. Em 20 de Julho de 1917 surgira a declaração de Corfu, publicada conjuntamente por um comité jugoslavo no exílio e pelo governo sérvio refugiado, onde se prevê a congregação dos eslavos do sul, sob a direcção da Sérvia, numa monarquia constitucional. Em 23 de Novembro de 1918, em Zagreb, um congresso nacional institui o reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos que, a partir de 3 de Outubro de 1929, passa a designar-se por Jugoslávia; foi então designado rei Pedro I, mas devido à sua idade, Alexandre foi proclamado imediatamente como regente; será rei, Alexandre I, entre 1921 e 1934. As fronteiras do novo Estado, então com quase 14 milhões de habitantes e 248 494 quilómetros quadrados, são fixadas pelos Tratados de Neuilly (27 de Novembro de 1919), Saint-Germain (10 de Setembro de 1919) e Trianon (4 de Junho de 1920); no novo Estado aparecem cerca de 15% de minorias não eslavas, como albaneses, húngaros, alemães e romenos; a nova bandeira reunia as cores azul da Sérvia, branca, da Croácia, e vermelha, da Eslovénia. A partir de 1929 surge uma ditadura marcada pelo centralismo, contra a reacção dos croatas, liderados pelos ustachis
dirigidos por Ante Pavelic; em 9 de Outubro de 1934 o rei era asassinado em Marselha pelos nacionalistas croatas.

II Guerra Mundial. Em 25 de Março de 1941 a Jugoslávia aderiu ao pacto tripartido; dois dias depois, surge um golpe militar anti-alemão; em 6 de Abril, a Alemanha invade a Jugoslávia; a Croácia passa a Estado independente e recebe parte da Bósnia; a Itália anexa a Eslovénia e a Dalmácia; a Bulgária ocupa grande parte da Macedónia; a Hungria recebe parte da Voivodina. Surge uma resistência anti-alemã: de um lado, os chetniks dirigidos pelo coronel sérvio Mihaílovitch; do outro os comunistas, os partisans, dirigidos pelo croata Josip Broz, Tito; tanto os soviéticos como os restantes aliados apoiam estes últimos que conseguem instaurar uma organização administrativa; em Novembro de 1942, os titistas criam um comité antifascista de libertação nacional e em 1943, um governo provisório; em Outubro de 1944, as tropas soviéticas entram na Jugoslávia. Nas eleições de 11 de Novembro de 1945 surge uma lista única liderada pelos comunistas, a chamada Frente Nacional que consegue 90% dos votos. Em 31 de Janeiro de 1946 estabelece-se uma nova constituição que faz da Jugoslávia uma federação de seis repúblicas (Sérvia, Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedónia); o coronel Mihailovitch é executado em 17 de Julho de 1946.

Retirado de Respublica, JAM

Imagens picadas da Wikipédia

Judeus e sociologia

Judeus que nos finais do século XIX e princípios do século XX preponderaram na sociologia (Durkheim, Mauss, Simmel) e no marxismo (Marx, Lassalle, Bauer, Luckacs). Como salienta Habermas "não foi por acaso que entre as duas guerras, numa época marcada pela crise do capitalismo liberal e pela ascensão do fascismo, um grupo de burgueses liberais judeus fundou um instituto cuja tarefa é fazer a análise crítica da sociedade" e isto porque os judeus "sentiam a tal ponto a sociedade como uma coisa contra a qual se chocavam, que lhes era por assim dizer natural, olharem‑na com um olhar sociológico".

Retirado de Respublica, JAM

Jovens Hegelianos

Ditos também hegelianos de esquerda, por se assumirem contra os hegelianos ortodoxos, também ditos hegelianos de direita ou conservadores. Entre os primeiros, D. F. Strauss, Feuerbach, Bruno Bauer, Max Stirner, Moses Hess e Karl Marx.

Retirado de Respublica, JAM

Jovem Turquia 1911

Sociedade secreta portuguesa, dominada por um movimento de capitães maçonicamente enquadrado, que controla o ministério da guerra do governo provisório da I República. O grupo, chefiado por Álvaro de Castro, é participado por João Pereira Bastos, Hélder Ribeiro, Américo Olavo, Vitorino Guimarães e Sá Cardoso. São membros da loja Portugal criada em 1908 e transformada, depois de 1910, na Jovem Turquia. O grupo tinha desistido de apoiar os revolucionários da Rotunda, em 5 de Outubro, depois de conversas com Ribeira Brava, o que fez Machado Santos irar-se.

Retirado de Respublica, JAM

Jovem Italia (1831)

Sociedade secreta Jovem Itália (Giovine Italia), constituída em Marselha, por Mazzini. No manifesto fundador reclama-se a constituição de unidades nacionais, entendida como o presságio da grande Federação Europeia que deve unir numa só associação todas as famílias do antigo mundo. A federação dos povos livres apagará a divisão dos Estados, querida, fomentada pelos déspotas, e deste modo desaparecerão as rivalidades de raças e se consolidarão as nacionalidades tais como as querem o direito e as necessidades locais. Aplicando estes princípios a Itália, este antigo carbonari propõe a instauração de uma republica unitária e democrática, através da insurreição popular e até pretendia fazer imbuir o patriotismo italiano de um fervor moral e deísta, bem à Mazzini, resumido no lema que adoptou: Deus e Povo.

Retirado de Respublica, JAM

Jovem Europa (1834)

Mazzini, depois de ser expulso de França e de tentar invadir o Piemonte, quando estava exilado em Berna, funda o movimento, a Jovem Europa, visando uma Europa Livre e Unida, pela congregação de todos os movimentos revolucionários das diversas nações. O manifesto, emitido em 15 de Abril de 1834, em nome da liberdade, igualdade e humanidade, parte do princípio que todos os homens e todos os povos têm uma missão particular e que a associação dos homens e dos povos deve reunir a protecção do livre exercício da missão individual à certeza que tudo se faça tendo em vista o desenvolvimento da missão geral. Como então se reconhece, visa-se o projecto de impor à Europa uma unidade absoluta fundado no século XIX, uma teocracia republicana, um papado republicano, como antes Carlos V e Filipe II sonhavam uma monarquia universal. Neste sentido, advoga um sistema de centralização, uma constituição unitária, segundo a qual os países da Europa não serão mais do que departamentos dum só Estado do qual Paris será a capital. Uma atitude diversa da que o mesmo Mazzini assumira em escritos anteriores, como em Pensieri sopra uma Leteratura Europea, quando ainda adoptava uma atitude espiritualista e federalista, advogando a unidade moral da Europa pela república democrática que deve conduzir à federação dos povos (... ) pela fusão dos interesses, pelo progresso do espírito humano, pela necessidade de uma paz duradoura.

Retirado de Respublica, JAM

Jornalistas e Política

Weber considerava-os como os demagogos dos finais do século dezanove, dado que a imprensa escrita sucedera ao púlpito. Hoje fala-se na imprensa escrita, radiofónica e televisiva como o quarto poder. E invoca-se os exemplos de Silvio Berlusconi em Itália e de Francisco Pinto Balsemão em Portugal. Aliás, em 1997, dois dirigentes dos principais partidos políticos, Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Portas, ascenderam à notariedade como jornalistas. Outros podem invocar-se na história política portuguesa, de Rodrigues Sampaio a Magalhães Lima, sem esquecermos António Ferro. No início da I República, cada um dos principais partidos tinha, aliás, o seu jornal.

Retirado de Respublica, JAM

Jorge da Boémia

Jorge da Boémia ou Jiri de Podiebrad, rei da Boémia entre 1458 e 1471, quando, em 1464, projecta uma aliança ofensiva da cristandade contra os turcos, através do estabelecimento de uma espécie de assembleia de príncipes cristãos, já é mais sincero no modelo de criação de uma universitas, ou de uma comunidade europeia. Jorge da Boémia era um nobre hussita nascido em 1420, que foi eleito rei da Boémia depois da morte, sem descendência, de Ladislau. No ano de 1466 era excomungado pelo papa Paulo II que contra ele pregou uma cruzada. O projecto, talvez o primeiro modelo de aliança entre príncipes, foi apresentado aos reis da Hungria, da Polónia, da França e à República de Veneza, em 1464, sob o título de Congregatio concordiae, visando estabelecer a paz em toda a cristandade. O modelo é o de aliança de reinos, cada qual com um voto, onde os acordos aí obtidos não teriam de ser conseguidos por unanimidade, aproximando-se do virá a ser qualificado como de federação. O objectivo declarado é defender os Estados da República bem como proteger e estender as fronteiras da República, a fim de emancipar os povos e os reinos pela organização de uma nova Europa. Jorge Podiebrad adoptou o projecto do seu conselheiro francês António Marini, tendo enviado em missão pela Europa o próprio cunhado Leo von Rozmithal, que chegou a visitar Portugal, em 1465.

Retirado de Respublica, JAM

João II (D.)

Na encruzilhada de todo este processo está, sem dúvida, D. João II. Alguns historiadores não se coibem mesmo em atribuir-lhe um qualificativo cesarista. Joaquim Veríssimo Serrão, referindo-se-lhe, salienta: não estamos ainda na primeira fase do absolutismo político, mas caminha-se para ela, com um conceito novo de realeza, não como dom de atributos pessoais mas como símbolo de uma autoridade que à grei se impõe acatar. E isto porque D. João II teria sido, segundo o mesmo historiador, o primeiro a erguer um conceito de Estado cesáreo, abrindo as portas do Portugal moderno. Assim, considera que a própria divisa do monarca — um pelicano, como ave que simboliza o apego na criação dos filhos — ajuda a compreender a visão paternalista, não absolutista, de D. João II, que queria defender "a sua grey" no respeito não discutível pela "sua ley", ou seja na vontade acatada da autoridade real. Alfredo Pimenta, por seu lado, salienta que D. João II simboliza, em alto grau, o regime de Poder pessoal do Rei (... ) A sua autocracia exerce-a únicamente através do interesse supremo do estado que corporiza a Nação, e que êle funde na sua própria personalidade. O contemporâneo Rui de Pina, apesar de todo o oficialismo, talvez seja mais preciso: sendo senhor dos senhores nunca quis nem parecer servo de servidores. E isto porque para D. João, as cousas de sua honra, e Estado, quiz que em todolos tempos sempre a elle fossem fectas, e guardadas com grande vebneraçam, e muito acatamento, de maneira que em todas parecia sempre lhe esquecer que era homem, e nunca lhe deixava de lembrar que era Rey e grande Senhor. Segundo a sogra, D. Brites, irmã do célebre Infante D. Fernando, a qual esteve na base daquela aliança com os Reis Católicos que levou ao tratado das Alcáçovas, D. João II queria corrigir o mundo em um dia, com novidades que fizeram muito scândalo. Por nós, diremos que ele apenas queria deixar de ser um primus inter pares, um mero suserano entre suseranos e assumir-se, não como o único senhor, mas como um senhor de senhores. De facto, D. João II pretendia, sobretudo, reagir contra os privilégios e abusos do partido aristocrático, herdados do reinado de D. Afonso V, procurando evitar a hipótese de dilaceração do reino, como acontecera com Castela, durante a governação de Henrique IV. Assim, em aliança com os povos que mais sofriam com a arbitrariedade senhorial, D. João II vai tomar medidas drásticas, quando, por exemplo, reduz o número de vassalos para 2 000 com quantia e outros tantos sem quantia. O facto primordial do respectivo reinado prendeu-se com a alteração da, até então tradicional, menagem ou homenagem vassálica, concebendo-se uma nova fórmula de juramento, preito e menagem, onde procurava acentuar-se que os castelos eram do rei e que os respectivos alcaides os detinham em nome do mesmo rei, a ele estando inteiramente subordinados. Mandou também rever todas as doações e privilégios que o rei tinha dado; efectivou o direito dos corregedores entrarem em todas as terras senhoriais. Além disso, determinou que os mandados régios fossem cumpridos sem intervenção dos senhores e também impôs a salvaguarda das eleições nos concelhos. Em 15 de Dezembro de 1481 chegou mesmo a expedir cartas régias submetendo a confirmação geral todos os privilégios, liberdades, doações, graças, mercês, tenças e ofícios que tinham sido dados pelos antecessores, submetendo-os a uma comissão por ele nomeada.

Retirado de Respublica, JAM

Jouvenel, Bertrand de (n. 1903)

Começa como militante do Partido Radical que abandona em 1934. Funda então o semanário La Lutte des Jeunes, onde defende a necessidade de uma revolução anticapitalista, antidemocrática, antiliberal e antimarxista. tem como colaborador Drieu la Rochelle, propondo um sistema político autoritário, com eliminação dos partidos políticos e dos grupos de pressão. Em vez de uma Câmara dos Deputados, propõem um Conselho das Corporações e em vez de ministros, directores técnicos. Colabora em 1936 com Jacques Doriot e o Parti Populaire Français e assume o combate contra aquilo que designam por judeo-marxismo. Em 1938 elogia Mussolini e Hitler, os quais são comparados a César Augusto. Em 1941 ainda considera a vitória do nazismo como um triunfo do espírito.

esse "espírito de Maquiavel na língua de Montesquieu"

considera que existe, com efeito, uma concepção nominalista de sociedade que vem dos romanos e que foi expressa por Cícero, referindo o populus romanus, não como uma pessoa, mas como um conjunto de indivíduos agrupados, como algo de concreto, como simples adição aritmética, como uma reunião de homens naturalmente autónomos, e não como um ser de natureza diferente.

Foi apenas com a concepção de nação resultante da Revolução Francesa que passou a existir uma concepção autenticamente realista da sociedade. Porque se anteriormente os indivíduos se reuniam à volta do rei, como chefe amado e respeitado, com a Revolução Francesa os individuos passam a unir‑se, não à volta, mas na nação, passam a integrar‑se num todo e não apenas a circular na órbitra de uma qualquer entidade afectivamente estabelecida. É um todo "que une uma vida prórpia e superior à das partes" e a nação subiu ao trono, "a nação não é um outro: é o sujeito ele mesmo e, contudo, é mais do que ele, é um nós"

considerava que o princípio das nacionalidades "actua como um ácido que decomporia, se o deixassem fazer, até nos Estados mais antigos". Georges Burdeau considera que o mesmo seria "lancer une proie dans le jungle internationale"

a diferença entre o Estado e os outros grupos não deriva do monopólio legal estatal do uso da força, mas do facto de nos grupos não estatais apenas existir uma autoridade de facto ou uma quase autoridade de jure. É que a aceitação da autoridade estatal resultaria sempre de um processo global de socialização quase involuntária, não envolvendo uma escolha deliberada. Trata‑se, aliás, de uma posição bastante próxima do anti‑construtivismo de Hayek

O dever‑ser constitui, com efeito, uma constante, talvez inseparável, de qualquer definição de Estado. Dever‑ser que particularmente ressalta no processo de definição dos chamados elementos do Estado.

chega mesmo a comparar estas sucessivas alterações dos mapas dos Estados como o movimento das amibas, visto a um microscópio, porque "a virtude conquistadora está também ligada ao poder como a virulência ao bacilo".

"o aparelho de Estado é construído por e para o poder pessoal. Para que a vontade de um só homem, para que uma só vontade se transmita e se execute num vasto reino, é preciso todo um sistema de transmissão, todo um sistema de educação e os meios de manter um e outro. Isto é, burocracia, polícia, imposto".

Para o mesmo autor as repúblicas antigas não conheciam aparelho de Estado, um rei que "comanda todos estando acima de todos (sopra, supranus, sovrano)", um rei com súbditos. "A República é claramente nós, nós cidadãos romanos, considerados na sociedade que formamos para os nossos fins comuns. O Estado é aquele que nos comanda soberanamente a nós e no qual estamos incorporados"

Assim, "a era monárquica constitui, pois, um corpo distinto do corpo social, o Poder, que vive duma vida própria, que tem interesses, caracteres, fins próprios".

E mesmo quando o rei desaparece a sua obra permanece:"a sociedade está constituída em torno de um aparelho que a domina e que se lhe tornou necessário, da sua existência, das relações instauradas entre ele e os sujeitos, resulta naturalmente que o moderno não pode ser cidadão no sentido antigo, aquele que concorre para toda a decisão e para toda a execução, em qualquer circunstância participante activo na sociedade pública",

por seu lado, refere que "o princípio de formação dos agregados vastos não é outro senão a conquista". Ora "quando uma cidade comanda muitas cidades", princípio donde derivam as actuais capitais, ora "quando um pequeno povo comanda muitos povos", princípio da nobreza.

Neste sentido, considera que o Estado "resulta essencialmente dos sucessos de um "bando de salteadores que se sobrepõe a pequenas sociedades particulares", um poder que "não pode reclamar‑se de qualquer legitimidade. Não prossegue qualquer fim justo; a sua única preocupação é explorar em seu proveito os vencidos, os submetidos, os súbditos. Alimenta‑se das populações dominadas".

Para ele " a história não mostra entre os vecedores, membros do Estado, e os seus vencidos outras relações espontâneas senão a exploração", porque "em todo o lado o grande conjunto, 'o Estado', surge‑nos caracterizado pela dominação parasitária de uma pequena sociedade sobre um agregado de outras sociedades "

"o poder muda de aspecto mas não de natureza".

, que o "instinto de crescimento é próprio do poder, pertencendo à sua substância".

O mesmo autor referia, aliás, que "os que são Estado reservam para eles próprios o direito de falar em nome da nação, não admitem interesse da nação distinto do interesse do Estado. Esmagarão como sedição o que a monarquia escolhia como admoestação. Sob o pretexto de que o Poder foi dado à Nação e porque se recusa reconhecer que há duas entidades distintas e que podem nunca deixar de o ser, entregou‑se a Nação ao Poder".

poderemos ver o "avanço secular do Estado", a "marcha triunfal do Poder". O poder como autoridade, "tende a ser mais autoridade" e o poder como "puissance" tende a ser mais "puissance".

Reconhece, no entanto, que "o Estado e o Indivíduo não estão sózinhos na Sociedade. É que existem outros poderes, poderes sociais relativamente aos quais o homem também é devedor de obediência e de serviços" e "como todo o poder na sociedade assenta nas obediências e nos tributos, exerce‑se naturalmente uma luta entre poderes para apropriação das obediências e dos tributos"

Há, portanto, que ultrapassar as classificações formais e as mais ou menos dogmáticas e que detectar tentações de estatolatria em todos os modelos organizacionais do poder político.

acentua o paralelismo entre a teoria da soberania popular de Rousseau e a teoria medieval da soberania divina:"uma e outra admitem um direito ilimitado de comando, mas que não é inerente aos governantes. Pertence este direito a um poder superior ‑ Deus ou o Povo ‑ que está impedido pela sua natureza de o exercer ele próprio. e que, portanto, deve confiar um mandato ao poder efectivo"

considera que o Poder, se tem uma "natureza egoísta", é substituído por uma "natureza adquirida, social" e aquilo que era "estrangeiro" passa a ser "nacionalizado".

Para ele " a planta do Poder, quando atinge um certo grau de desenvolvimento, não pode mais alimentar‑se do chão que lhe está submetido sem nada restituir" e "a corrente das prestações que se dirigia unilateralmente da Cidade da Obediência para a Cidade do Comando tende a equilibrar‑se por uma contra‑corrente", “o comando tem que passar a servir o bem comum" e "o Poder através de um processo natural passou do parasitismo à simbiose" e "como acontece na natureza humana, onde o hábito gera a afeição, o rei, agindo pelo interesse do poder, age com amor, depois, enfim, pelo amor".

o instinto de crescimento é próprio do Poder, pertencendo à respectiva substância. Tal processo actuaria pelo nivelamento, referindo um ácido estatal que decompõe as moléculas aristocráticas.

É que o poder, no seu crescimento, tem como vítimas predestinadas e como opositores naturais poderosos, os chefes de fila, aqueles que exercem uma autoridade e possuem um poderio na sociedade.

A esse processo chama estatocracia, referindo uma tradicional aliança entre o centro e a plebe contra os corpos intermédios dotados de autoridade: o Estado encontra nos plebeus os servidores que o reforçam, os plebeus encontram no Estado o senhor que os eleva.

os governos concedem benesses ao povo para, com a sua ajuda, arrebatarem a influência aos agrupamentos sociais secundários, escondendo a sede de mando sob a aparência de protecção que manifestam estar dispostos a conceder
.

em A Teoria Pura da Política considera que a política é acção que desencadeia aquele movimento, que leva à agregação de outros, em torno do projecto ou da ideia de um determinado autor.

A política é definida como o comportamento dos homens nos seus postos de autoridade e pelo movimento que inserem nos negócios políticos, tendo que ser entendida como todo o esforço sistemático levado a cabo em qualquer parcela do âmbito para mover os outros em prol de algum projecto desejado pelo autor do mesmo, o que requer a manifestação de um facto que virá a relacionar‑se com um acontecimento futuro, porque o futuro está sempre presente na mente do homem que actua.

Neste sentido, refere que o político procura produzir um certo evento solicitando a acção de outros. Procura provocar acçöes cooperantes adequadas e, para obtê‑las, orienta‑se de maneira a que estas se produzam.

Jouvenel aceita, deste modo, a perspectiva de Proudhon para quem a acção é a ideia, considerando que agimos suficientemente desde que espalhemos na atmosfera intelectual os germes da sociedade futura.

Para o mesmo autor, a acção é política tanto pela sua matéria como pela sua forma... A acção de política pura é necessariamente agregativa... Onde a acção de agrupar tem por objectivo final a existência do grupo, há política pura. Considera mesmo que parece legítimo definir a actividade política como a actividade construtiva, consolidadora e conservadora dos agregados humanos.

o Estado e o Indivíduo não estão sozinhos na Sociedade, existindo outros poderes, poderes sociais relativamente aos quais o homem também é devedor de obediência e de serviços e como todo o poder na sociedade assenta nas obediências e nos tributos, exerce‑se naturalmente uma luta entre poderes para apropriação das obediências e dos tributos.

foi o rei e o trono que construiram as nações: tornámo-nos compatriotas como fiéis de uma mesma pessoa, de um rei que acumulou títulos porque, sendo senhor de povos distintos, precisava de assumir relativamente a cada um aspecto que lhe fosse familiar. Assim, ele foi o destruidor da República dos conquistadores e o construtor da nação, transformando elementos dispersos, que apenas constituíam um agregado de uma societas e que, depois, passaram a integrar um todo.

E nunca é demais assinalar "um fenómeno central em Política" que é "a influência das palavras sobre os comportamentos individuais ou em grupos mais ou menos numerosos", como refere Bertrand de

"a História é luta de poderes... a sociedade é uma constelação de poderes que sem cessar se levantam, se acrescentam e se combatem. Entre poderes de espécie diferente, como do poder político ao poder familiar, ou senhorial ou religioso, há todo um conjunto de colaboração e conflito"

a própria liberdade é um facto que se afirma por meio do sujeito, pelo que "este direito subjectivo pertence àqueles que têm meios de o defender. Isto é aos membros das famílias vigorosas que, de qualquer modo, se federaram para formar a sociedade".

Tanto nas gentes romanas como nos barões portucalenses, os fundadores de qualquer unidade política tendem a criar algo de novo visando defender os respectivos direitos. É o célebre grito de Almacave de "nós somos livres, o nosso rei é livre" que, apesar de apócrifo, constitui uma fundamental verdade normativa sobre as origens da nossa nacionalidade.

Jouvenel salienta que "o comando é uma altitude. Respira‑se um outro ar, descobrem‑se perspectivas diferentes das dos vales da obediência". Mas há também um dualismo no poder: um ego‑ismo e um social‑ ismo, "uma impulsão egoista combinada com serviços sociais" dualismo irredutível" assistindo‑se a um "crescimento indefinido do Poder, servido por uma aparência mais ou menos altruísta, ainda que sempre animada pelo mesmo génio dominador"

"uma ciência positiva é medicamento perigoso para constituições morais débeis".

·L’Économie Dirigée. Le Programme de la Nouvelle Genération, Paris, Éditions Valois, 1928.

·Le Réveil de l'Europe, Paris, Éditions Gallimard, 1935.

·Après la Défaite, Paris, Librairie Plon, 1941.

·Du Pouvoir. Histoire Naturelle de sa Croissance, Genebra, Éditions du Cheval Ailé, 1945.

Nos três primeiros livros trata das metafísicas, das origens e da natureza do poder. No quarto, surge o Estado entendido como revolução permanente. No quinto, o poder muda de aspecto mas não de natureza; no livro sexto, faz o confronto entre o poder limitado e o poder ilimitado.

·De la Souverainité. À la Recherche du Bien Politique, Paris-Genebra, Éditions Medicis, 1955.

·The Pure Theory of Politics, 1963 cfr. trad. port. Teoria Pura da Política, Lisboa, Guimarães Editores, 1975.

Obra dividida em seis partes: Perspectiva: a política como história; O meio ambiente: o Ego no reino desconhecido; Acção: instigação e resposta; Autoridade: Potestas e Potentia; A decisão; Atitudes.

·L'Art de la Conjecture, Mónaco, Éditions du Rocher, 1965.

·Du Principat et autres Refléxions Politiques, Paris, Éditions Hachette, 1972.

·La Civilization de Puissance, Paris, Librairie Arthème Fayard, 1976.

·Les Débuts de l'État Moderne, Paris, Librairie Arthème Fayard, 1976.

Retirado de Respublica, JAM

Teoria dos Jogos

Teve a sua origem em P. G. Cambray, The Game of Politics. A Study of the Principles of British Political Strategy, Londres, John Murray, 1932, onde se aplicavam as metáforas do jogo do xadrez à política internacional. Atinge as suas culminâncias com o behaviorismo, tanto na obra de J. Von Neumann e Oscar Morgenstern, Theory of Games and Economic Behaviour, de 1943, como em A. Rapoport, Fights, Games and Debates, Michigan University Press, 1960. Nesta base, Michel Crozier vem falar na organização como uma forma de actividade estruturada em torno de um objectivo, num conjunto de jogos articulados uns com os outros, referindo que é a estruturação do campo que oferece constrangimento e recursos a partir dos quais os membros de uma célula elaboram o jogo que constituirá o seu governo, entendendo o poder como um jogo conjunto complexo de jogos abertos, entrecruzados e interdependentes, onde todos os jogadores procuram maximizar os seus ganhos.


Jogo de soma variável

Quando os jogadores competem uns com os outros, mas onde todos podem ganhar conjuntamente. Pensou-se que esta seria a regra da exploração da natureza, da sujeição da terra. Só que, como explica o ecologismo, gerou-se um utendi et abutendi. Assim, em vez do cartesiano dono e senhor da natureza, aquilo que Max Weber ainda qualificava como a luta pacífica do homem com a natureza, começa agora a defender-se o homem respeitador da natureza, onde aquilo que nela cultivamos, ou acrescentamos, tem de respeitar a regra da harmonia, e onde o abuso de direito deixa de ser direito.

Jogo de soma zero

Quando os ganhos de todos os jogadores somam zero, porque aquilo que um ganha perde o outro. Sempre que alguém obtém um ganho, o outro tem uma perda. Nas relações de poder, se um homem, colocado no lado activo, adquire ou exerce um poder sobre outro homem, este último, situado no lado passivo, perde alguma coisa, passando a estar vinculado a um dever (quando o outro tem um direito subjectivo) ou a uma sujeição (quando o outro tem um direito potestativo).

Jogo político

Alguns autores, partindo da noção de jogo como um mecanismo concreto graças ao qual os homens estruturam as suas relações de poder(... ) deixando-lhes a sua liberdade, consideram por fim que a política é um jogo de competição que se exerce numa ordem definida como o conjunto de regras destinado a codificar a competição.

Retirado de Respublica, JAM

João Paulo II (n. 1920)

Karol Wojtyla. Eleito papa em 1978. O primeiro papa não italiano em 450 anos. Polaco, ordenado sacerdote em 1946. Professor em Lublin e Cracóvia. Arcebispo de Cracóvia desde 1964. Cardeal desde 1967. Defende a democracia como aquele sistema que assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes , quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno. Considera a doutrina social da Igreja uma nova concepção da sociedade e do Estado e, consequentemenete, da autoridade(CA;I,& 4), distante do racionalismo iluministico, que concebe a realidade humana e social do homem de maneira mecanicista(Id. I,& 13) Porque, embora aceitasse as regras do jogo do demo-liberalismo, mergulhava num subsolo filosofico radicalmente diverso dos temps modernas. Assinala que uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo, aberto ou dissimulado (CA,II). Defende o princípio da subsidariedade segundo o qual uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum(CA,& 49). Critica sistemas de segurança nacional, que visam controlar de modo capilar toda a sociedade para tornar impossível a ideologia marxista. Exaltando e aumentando o poder do Estado... pretendem preservar o seu povo do comunismo; mas, fazendo isso, correm o grave risco de destruir aquela liberdade e aqueles valores da pessoa em nome das quais é preciso opor-se àqueles (CA, II,& 19). Observa que a sociedade de bem-estar ou sociedade de consumo tende a derrotar o marxismo no terreno do puro materialismo, mostrando como uma sociedade de livre mercado pode conseguir uma satisfação mais plena das necesisdades materiais humanas que a defendida pelo comunismo, e excluindo igualmente os valores espirituais. Na verdade, se, por um lado, é certo que este modelo social mostra a falëncia do marxiso ao construir uma sociedade nova e melhor, por outro aldo, negando a existëncia autónoma e o valor da moral, do direito, da cultura e da religião, coincide com ele na total redução do homem à esfera da economia e da satisfação das necesidades materiais (CA, II,& 19).

·Laborem Exercens, Roma, 1981.

· Sollicitudo Rei Socialis, Roma, 1988.

· Centesimus Annus, Roma, 1991.

· Fides et Ratio, Roma, 1998.

Retirado de Respublica, JAM