Estado
Etimologia. A palavra Estado vem do italiano Stato que visa retomar a expressão latina status, o que está, uma situação, um estatuto, uma forma neutra substantivada do verbo stare
Estado Moderno
1. O processo de construção do Estado Moderno.
Da Razão de Estado ao Estado-Razão. O modelo racional-normativo. O Estado de Direito como um processo de juridicização da política e de institucionalização do poder. O Estado Moderno primitivo. A invenção do nome (Maquiavel). A invenção do princípio (Bodin e o conceito de soberania). A emergência do Leviatã. A Paz de Vestefália e o cuius regio, eius religio. A emergência do Estado-Nação. O processo da revolução atlântica. Revolução inglesa, revolução norte-americana. Revolução francesa. As independências sul-americanas. A primavera dos povos. A Segunda Guerra Mundial e a descolonização. A polis como comunidade (o Estado Comunidade ou República), como soberania (o Estado Aparelho ou Principado) e como Nação. — O processo histórico de construção do Estado Moderno. As raízes medievais. O Estado como Justiça (a luta contra a vingança privada, a nomeação de juízes pelo aparelho de poder central). O Estado como Finanças ( a ideia de imposto geral e permanente, o consentimento dos parlamentos e a eliminação das isenções). O Estado como Legislador ( a lei geral em luta contra a pluralidade dos costumes, a autonomia da doutrina e a resistência da jurisprudência). Os objectivos do Estado Moderno: a construção do monopólio da coacção (monopólio da força pública legítima e luta contra os poderes periféricos) e do monopólio do direito (o controlo das formas de criação de direito novo). Os processos de construção: a centralização e a concentração. — O movimento renascentista. A política libertando-se da dependência que mantinha face à teologia e da companhia da ética e da disciplina do direito. — O baptismo do Estado. Maquiavel. O nascimento do Estado como criação de poder em vez de mera transmissão de poder. — O conceito de soberania. Jean Bodin e a ideologia do soberanismo. — O movimento da Razão de Estado. — O modelo leviatânico do Estado Moderno. — O modelo organicista. — O Estado Força (Macht Staat). De Heinrich von Treitsche a Maspétiol. — O surgimento do Estado-Nação. A procura da unidimensionalidade, pela assimilação e pela integração. — A estatolatria. A identificação do público com o estatal. — O processo de territorialização do Estado Moderno. A geopolítica e as teses do espaço vital. Friedrich Ratzel (a ideia de Estado marcada pela situação, pelo espaço e pela fronteira). Rudolf Kjellen (o Estado como indivíduo geográfico).
2. O Estado a que chegámos.
— A teoria weberiana. A legitimidade racional em vez da legitimidade tradicional dos anciens régimes. A dominação de carácter burocrático, em vez da dominação estamental. — O Estado Racional, como produto de uma mobilização intelectual. O papel das universidades na formação do Estado. Dos legistas do renascimento do direito romano, aos constituintes das revoluções liberais e constitucionais. O papel dos sociólogos na perspectiva do Estado como Cérebro Social (Durkheim). Os novos modelos de Estado Sábio ou de Governo pela Ciência e o papel dos tecnocratas. — O Estado contra a Nação. — Do Estado Árbitro ao Estado Tutor. A emergência do Estado Providência e o intervencionismo estatal no social e no económico. A passagem do Estado de Bem-Estar ao Estado de Mal-Estar. — O Estado Moderno como Estado Arcaico. A crise do Welfare State — o crescimento do intervencionismo político e social, como elemento gerador da inércia. A despolitização do Estado. O neocorporatismo a nível da sociedade; o Estado de Partidos a nível da participação política. — O regresso ao conceito de comunidade internacional. Da Res Publica Christhiana à República Universal. Da societas civilis à societas generis humani (Cícero e Francisco de Vitória). — O problema dos grandes espaços. Da governação da aldeia global. Do direito intercivitates ao direito universal. — O político como um sistema de sistemas e mera unidade de ordem.
Estado. As Origens.
As origens do Estado como uma questão filosófica.
Questionarmo‑nos sobre as origens do Estado constitui um dos principais processos reveladores de qualquer concepção do mundo e da vida. Com efeito, a questão da origem do Estado é menos uma questão histórica do que uma questão filosófica, ou, por outras palavras, é mais uma questão de historicistas do que de historiadores , mais uma questão de poetas do que de constitucionalistas, porque nos conduz aos terrenos do nevoeiro sincrético de um tempo inicial onde, perante a escassez ou até à inexistência de fontes históricas, tem de volver‑se ao in principio erat verbum, onde apenas são possíveis exercícios de imaginação criadora a partir dos restritos vestígios dos chamados primitivos actuais.
O darwinismo e a atracção pelas origens.
Esta atracção pelas origens e, por conseguinte, pelos chamados primitivos actuais, surgiu fundamentalmente depois da publicação de The Origin of Species by Means of Natural Selection de Charles Darwin (1809‑1882), em Novembro de 1859, onde todos os organismos sociais foram considerados como tendo um tronco comum, teses que, quando aplicadas ao Estado, vão quase exigir a prefiguração de uma espécie de Estado macaco, donde todos os Estados seriam provenientes.A ideia de sociedade primitivaHerbert Spencer em Principles of Sociology, de 1875, foi um dos primeiros a considerar a existência dessa sociedade primitiva: a causa que mais contribuiu para engrandecer as ideias dos fisiologistas, é a descoberta pela qual nós aprendemos que organismos que, no estado adulto, nada parecem ter em comum, foram, nos primeiros períodos do seu desenvolvimento, muito semelhantes; e mesmo que todos os organismos partem duma estrutura comum. Se as sociedades se desenvolvem e se a dependência mútua que une as suas partes, dependência que supõe a cooperação, se efectuou gradualmente, é preciso admitir, que apesar das diferenças que acabam por separar as estruturas desenvolvidas, há uma estrutura rudimentar donde todas derivam.
Evolucionismo e desenvolvimentismo
Estavam, assim, fixados os ingredientes fundamentais de um evolucionismo, mais ou menos liberal, mais ou menos funcionalista, que vai perspectivando a história do mundo como um processo onde há progresso ou desenvolvimento. Onde, a uma determinada fase, se segue outra, a mais moderna, sempre a caminho de um fim da história. E o Estado, neste contexto, apareceria como produto de uma necessidade da história, seria algo que vem depois da chefatura, tal como esta resultou da tribo e a tribo do bando...O Estado, como fase da história, seria como que um modelo de pronto‑a‑vestir teórico, que poderia adquirir-se nos manuais de direito político e de sociologia evolucionistas, algo que todas as unidades políticas teriam que usar depois da adolescência feudal e antes da integração em unidades supra‑estatais.De certa maneira, podemos dizer que primeiro está o conceito actual de Estado que cada um tem, ou que a cada um convém, e só depois vem a justificação histórica para esse conceito. Isto é, a história, neste caso, não passa de um reservatório de argumentos ao serviço de uma ideia, quando não de uma ideologia. É o passado como pretexto para o futuro, sob o disfarce da ciência do presente. Porque quando dizemos Estado podemos pensar nas coisas mais contraditórias...Perante esta inevitável viagem pela filosofia da história e pelo reino dos mitos, muitos preferem seguir o conselho de Ludwig Wittgenstein para quem do que não cabe falar, melhor é calar‑se, isto é, que devemos ter uma espécie de obrigação de silêncio perante certas impossibilidades de resposta racional.É evidente que no rigor tecnico‑jurídico apenas podemos falar de Estado quando a doutrina e a lei conseguiram conceitualizar o Estado, isto é, depois de Maquiavel e do absolutismo e, muito especialmente, depois das constituições escritas do liberalismo e das respectivas consequências, seja o direito constitucional, seja a teoria geral do Estado.
Os anacronismos
Neste sentido, falar de Estado antes de haver Estado Moderno, independente, soberano e, eventualmente, nacional é sempre um anacronismo, dado que tem de fazer-se uma extensão retroactiva do conceito. Quando muito poderíamos falar de certos sucedâneos do conceito de Estado ou de alguns antecedentes, mas sempre através da analogia.O Estado não passa de um conceito localizado no tempo e no espaço: não é historicamente necessário nem inevitável. Só o preconceito progressista e evolucionista é que considera o Estado de modelo Moderno e Soberano como um objectivo inevitável ou como um necessário ponto de passagem da evolução da humanidade.
Formas de vida pré-política e pré-social
Outros, mais afoitos, pouco se preocupam com este rigor e preferem utilizar o Estado no sentido de forma do político, pelo que, por exemplo, a própria polis da Antiguidade grega é vista como uma forma de Estado.No entanto, pouco se preocupam dado considerarem que interessam menos os nomes das coisas que as próprias coisas, menos as expressões qualificantes do que as realidades qualificadas. Contudo, dentro deste grande grupo, alguns consideram que, mesmo antes da forma política existiu uma forma de vida social pré‑política e até uma forma de vida, de uns com os outros, verdadeiramente pré‑social.
O perigo da mitificação
Em qualquer dos casos, por mais científicas que aparentem ser as origens da forma do político ou do Estado, corremos sempre o risco de pisar o sincretismo genético dos princípios, o mito das origens.Ora como refere Mircea Eliade, o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, no tempo fabuloso dos começos [...] É sempre o relato de uma criação; conta‑se como algo que se produziu, que começou a ser.O mito não fala mais do que sucedeu (Aspects du Mythe, Paris, Gallimard, 1963, p. 15)Ora, a mitificação conduz quase sempre a um antropomorfismo do político e do Estado, e até à sua personificação num herói, num pai‑fundador ou numa entidade equivalente.É o caso de Guilherme Tell na Suiça, de Joana d'Arc em França ou de Viriato e D.Afonso Henriques em Portugal.E mesmo as palavras rigorosamente científicas correm, pois, o risco de transformar‑se em parábolas, num in principio erat verbum onde a história se tranforma no género literário mais próximo da ficção e a ciência se volve em poesia.Até porque nunca sabemos até onde podemos ir nessa viagem pelo passado. Se devemos apenas considerar como limite a Antiguidade ou se, pelo contrário, temos que prosseguir através da Pré‑história. Ou então, como alguns pretendem, que ir além de Adão e Eva e passar ao macaco ou aos desígnios do Criador. E, assim, eis que tudo é possível misturando ciência com imaginação, crença com temor e pretensas revelações com certos autoritarismos de escola...
A procura dos founding fathers
Contudo, o mito fundacional de um qualquer Estado, seja o dos founding fathers ‑ ao estilo de D.Afonso Henriques, o fundador da nacionalidade, também cognominado o conquistador ‑ seja o das suas sucessivas refundações ‑ a de D.João I, com a vitória de Aljubarrota em 1385, a D.João VI, com a restauração em 1640, bem como, de certa maneira, as próprias revoluções constituintes de 1820, 1910, 1926 e 1974, todas com carácter refundacionista ‑ continua a ser o elemento regulativo de cada comunidade política.Se, algumas vezes, se invoca o elemento contratual de uma qualquer aliança entre as pessoas ou grupos fundadores, ‑ veja‑se o pacto dos viajantes da Mayflower ‑ outras prefere‑se um acto de violência heróica ‑ seja uma conquista ou uma luta dita de libertação ‑ , não faltando sequer aqueles que falam numa relação directa com a divindade.Entre nós, se alguns preferem o apócrifo compromisso das Côrtes de Lamego, outros apostam no não menos fantástico milagre de Ourique, não faltando aqueles que, mais freudianamente, referem a revolta do filho contra a mãe, a justa de S. Mamede, onde o jovem princípe se auto‑determina da mater Hispania, com a quebra dos próprios compromissos vassálicos, também expressos no lendário gesto de desagravo de Egas Moniz, símbolo da lealdade feudal.
Ubi societas, ibi status. As teses maximalistas
Para alguns autores, com efeito, onde existe uma sociedade tem que existir um Estado (ubi societas ibi status), dado que qualquer espécie de associação política tem de ser um Estado.Um dos representantes típicos desta posição, que Georges Balandier qualifica como maximalista, é S.F.Nadel para quem quando se considera uma sociedade, encontramos a unidade política, e quando se fala da primeira, consideramos , de facto, esta última (The Foundations of Social Anthropology, 1951).Também E.Meyer considera que à forma dominante do agrupamento social que encerra na sua essência a consciência de uma unidade completa, assente sobre si própria, chamamos nós Estado. Na mesma linha Radcliffe Brown identifica o Estado com a organização política, pormenorizando que o mesmo é o aspecto da organização total que garante a manutenção da cooperação interna e da independência externa.Marcel Gauchet, por exemplo, vem considerar que todas as sociedades estão grávidas do poder do Estado , ou melhor de uma estrutura de separação de que o Estado não constitui senão a materialidade visível. O Estado teria, pois, surgido quando os homens se tornaram os outros para os homens, quando se procedeu à utilização da exterioridade do fundamento social e se veio introduzir na sociedade uma separação entre os representantes exclusivos do poder e do saber e o número daqueles cujo destino é o de se lhe submeterem. Na mesma linha Giles Deleuze e Felix Guattari falam num Urstaat, num Estado Primordial que se abate sobre a organização primitiva e a reduz à sua mercê. Este Urstaat, como tal baptizado por Nietzsche, equivaleria às máquinas de guerra das civilizações nómadas e constituiria o início do Estado Moderno.Para estes autores, portanto, o Estado sempre existiu em todos os lugares e em todos os tempos e sempre muito perfeito e muito formado. Porque não é apenas a escrita que supõe o Estado, é a palavra, a língua, a linguagem. A auto‑suficiência, a autarquia, a independência, a preexistência de primitivos comuns é um sonho de etnólogo ( Anti Oedipe, I) Também alguma doutrina católica considera, na senda de Pietro Pavan, que o Estado existiu sempre e em toda a parte. Porque, por mais que se recue no tempo, encontrar-se-iam sempre grupos politicamente organizados, ainda que em formas embrionárias e muito diferentes, existiria sempre uma qualquer organização política (A Democracia e o Homem, p. 84).Do mesmo modo, Ortega y Gasset refere que interessa mais a função do que o órgão, existindo um poder público anterior ao corpo especial a que chamamos Estado.Trata‑se de uma posição algo idêntica à assumida por Platão na República (1.I.c.11), onde se considera que a mesma existe porque cada um de nós não se basta a si próprio, pois precisa de muitas coisas. Com efeito, assim como um pede ao outro o seu serviço e para qualquer outra necessidade recorre a outro ainda, pois precisamos de muitas coisas, e como muitos se juntam e auxiliam na mesma convivência, damos a tal convivência o nome de República.
Estadualidade
Do mesmo modo o neo‑hegeliano Felice Battaglia considera que em todos os tempos encontramos o Estado e sempre existirá o Estado, porque jamais houve política social e humana que não pressupusesse a estadualidade como posição de um querer comum em relação. E isto porque a vontade estadual é precisamente aquela vontade que se considera como particular e rejeita tal particularidade para querer a universalidade de uma lei absoluta da humanidade que qualifica como sócios a infinita multiplicidade dos sujeitos particulares, organizando‑os e unificando‑os.Na verdade, segundo esta concepção o Estado coincide com a sociedade e esta adequa‑se totalmente ao Estado, porque a estadualidade é relação e vontade da vida comum ajustada ao valor superior de uma lei (Curso de Filosofia del derecho, trad. cast., 3, pp. 36-37).
A ciência política como ciência do Estado
Maximalistas tendem também a ser todos aqueles politólogos que consideram a ciência política como ciência do Estado. Contudo, nem todos os maximalistas têm de aceitar o essencialismo platónico, o absolutismo hegeliano ou a estatolatria, dado que adoptam a mesma perspectiva os tomistas que identificam o Estado com a sociedade política.Até liberais como Karl Popper, profundos críticos do Estado Nação, quando advogam a necessidade de se conceitualizar uma sociedade política para todo o mundo referem o Estado Universal... Isto é, são tão estadualizantes que até recusam o Estado das nações por não o considerarem suficientemente universal, suficientemente político.
O maximalismo desenvolvimentista
A perspectiva maximalista é também adoptada pela escola de Gabriel Almond que defende o princípio da universalidade das estruturas políticas, para quem mesmo os sistemas mais simples possuem uma estrutura política, o que implica não só a consideração da universalidade das funções políticas, como também o reconhecimento da multifuncionalidade da própria estrutura política.Com efeito, esta perspectiva desenvolvimentista salienta que em todos os sistemas as mesmas funções se encontram necessariamente preenchidas e que, apesar de uma determinada estrutura tender para a especialização numa determinada função, isso não significa que a mesma não possa exercer secundariamente uma outra (v.g. os tribunais a quem cabe a função judicial de aplicação do direito são também criadores do direito).Os desenvolvimentistas, aliás, consideram que a diferença entre o Estado Moderno e os sistemas primitivos é menos de natureza do que de grau. Do grau de diferenciação das funções e do grau de especialização das estruturas.Isto é, tanto os sistemas políticos simples como os sistemas políticos complexos têm, pois, funções comuns, apenas diferindo nas características estruturais, já que nos Estados Modernos as estruturas são mais diferenciadas e mais interdependentes que nos anteriores modelos de Estado.Nesta sequência, também Lucian Pye e Sidney Verba consideram que, num sistema político não desenvolvido, estruturas pouco numerosas exercem funções pouco diferenciadas, sendo fraco o processo de divisão de trabalho.O desenvolvimento político consistiria, assim, no facto das estruturas políticas crescerem em número e diferenciação. Cada estrutura que surge seria, pois, colocada perante esse desafio face quer ao jogo da autonomia dos subsistemas, quer à integração num conjunto coordenado.
A postura minimalista
Pelo contrário, outros autores adoptam uma postura minimalista, reduzindo o conceito de Estado a certas formas de associação política, que podem, contudo, ser mais amplas que o conceito de Estado Moderno.Maurice Hauriou considera expressamente que o Estado não existiu sempre, é uma formação política de termo de civilização; as sociedades viveram muito mais tempo no regime de clã, tribo e suserania feudal que no regime de Estado (Théorie de l'Institution et de la Fondation, 1925). Neste sentido, também Roland de Maspétiol considera que o Estado nasceu em Roma, desapareceu no feudalismo , tendo reaparecido no século XVIJoseph Strayer refere que houve períodos [...] em que o Estado não existiu, e em que ninguém se preocupava de que ele não existisse. Walter Ullmann salienta que o conceito de Estado estava tão longe do pensamento da Alta Idade Média como a máquina a vapor e a electricdade (On Medieval Origins of Modern State, 1970)Para o jurista marxista‑leninista Pashukanis, por seu lado, eis que o processo do Estado terá começado nas comunidades urbanas, onde surgiram os fundos municipais comuns, primeiro, esporadicamente e depois como uma instituição permanente, onde o carácter público da autoridade vai encontrar a sua incarnação material na existência de homens que vivem destes recursos: empregados e funcionários, os serviços públicos.Considera que a monarquia absoluta só teve que apossar‑se desta forma de autoridade pública que tinha nascido das cidades e aplicá‑la a um território mais vasto. Isto é, a relação de troca exige uma terceira parte que incarne a garantia recíproca que os possuidores de mercadorias se outorgam mutuamente na sua qualidade de proprietários e personificando, por consequência, as regras das relações de troca entre possuidores de mercadorias (A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, trad. port., p. 189)
Das sociedades sem Estado às teses sobre o fim do Estado
Alguns consideram que existiram certas formas de vida de uns com os outros, pré‑sociais e quase anarquistas; outros salientam o facto de ter surgido, antes do Estado em sentido amplo, isto é, antes daquela estrutura que é marcada pelos laços políticos, sociedades conformadas pelo parentesco.Acresce também o facto de, normalmente, os que se preocupam em procurar no passado sociedades sem Estado tenderem também para a profecia do desaparecimento do Estado.Um dos clássicos defensores da existência de sociedades sem Estado é Pierre Clastres. Precisa, contudo, que mais do que sociedades privadas de Estado, há sociedades privadas da autoridade da hierarquia, da relação de poder, onde o espaço da chefatura não é um lugar de poder, mas uma simples competência técnica. O Chefe é aquele que tem dons oratórios, o saber‑fazer como caçador, a capacidade de coordenar as actividades da guerra, ofensivas ou defensivas. Paradoxalmente, esta sociedade sem Estado é também uma forma de hipostasiação do conjunto, do todo. É, no fundo, um totalismo que não é feito de sócios. Porque ser sócio implica, pelo menos, relação entre dois, isto é, a existência de um qualquer autor. Como salienta o mesmo Clastres, só o positivismo evolucionista, marcado pelo mito do progresso, é que pode falar em sociedades privadas de Estado, de mercado, de escrita, de história. É que, como ele salienta, em tal sociedade o poder político separado é impossível e porque não há lugar para ele nem sequer se pode falar num vazio. Clastres, partindo do exemplo do chefe dos índios apaches, Jerónimo, observa que a tribo não deixa que a superioridade técnica da chefatura possa transformar-se numa autoridade política. Jerónimo foi abandonado pela tribo quando se quis transformar num chefe político: a morte é o destino do guerreiro, porque a sociedade primitiva é tal que não deixa substituir ao desejo de prestígio a vontade de poder. Para ele, a propriedade essencial da sociedade primitiva é o exercício de um poder absoluto sobre tudo o que a compõe, é proibir a autonomia de um qualquer dos respectivos sub‑conjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes ou inconscientes, que alimentam a vida social, nos limites e na direcção pretendida pela mesma sociedade (Les Societés contre l'État). Neste sentido, pode dizer‑se que o político é o reconhecimento de um todo feito de parcelas. Salienta que a chefatura tem um poder quase impotente, dado que no decorrer da expedição guerreira o chefe dispõe de um poder considerável, por vezes, mesmo absoluto, sobre o conjunto dos guerreiros. Mas, com o regresso à paz, o chefe perde toda a sua força.O modelo do poder coercivo só é aceite em ocasiões excepcionais quando o grupo é confrontado com uma ameaça externa. Mas a conjugação do poder e da coerção cessa logo que o grupo corta as suas relações com o exterior. Refere ainda que se nas sociedades com Estado a palavra é o direito do poder, nas sociedades sem Estado, pelo contrário, a palavra é o dever do poder.Ou, por outras palavras, as sociedades índias não reconhecem ao chefe o direito à palavra porque ele é o chefe: exigem do homem destinado a ser chefe que ele prove o seu domínio sobre as palavras.Falar é, para o chefe, uma obrigação imperativa, a tribo quer ouvi‑lo: um chefe silencioso já não é chefe. Também para Claude Lévi‑Strauss o chefe tem resistência física e habilidade superiores, faz pensar mais no político que tenta conservar a sua maioria flutuante do que no déspota dotado de plenos poderes. Porque dos privilégios especiais de poder que lhe são atribuídos, apenas tem direito à poligamia e à prioridade na escolha de mulheres. Para Lévi‑Strauss o poder político deriva do consentimento daqueles que o sofrem. Não provem do constrangimento mas de um jogo de prestações múltiplas entre o chefe e os membros do grupo. Salienta, deste modo, que as sociedades primitivas não são apenas governadas pelo costume, havendo também claros elementos psicológicos nesta vocação política do chefe. Assim, o parentesco não é um decalque automático dos laços biológicos, dado que o que confere ao parentesco o seu carácter de facto social não é o que o mesmo deve conservar da natureza:é a maneira essencial como ele se separa dela. Um sistema de parentesco não consiste em laços objectivos de filiação ou de consanguinidade entre os indivíduos; não existe senão na consciência dos homens, é um sistema arbitrário de representações; não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de facto
A sociedade primitiva
Com efeito, como também salienta Georges Burdeau, a sociedade primitiva é coexistência e agregado e nem sequer pode falar-se, propriamente, em sociedade, dado não existir este sentimento ou esta representação de um todo, que é, ao mesmo tempo, conjunto. Porque na tal sociedade primitiva o grupo formaria uma unidade homogénea e indecomponível, donde o indivíduo apenas se destaca lentamente.Nestes termos, como refere F. H. Hinsley, nas sociedades sem Estado a autoridade repousa mais na coacção psicológica e moral do que na força. E se se recorre à força é porque os costumes e as tradições da sociedade assim o exigem. A coacção moral e a força, se esta for utilizada, podem ser aplicadas pelos velhos ou outros chefes, mas a estrutura de comando emana directa e invariavelmente da comunidade (Power and the Porsuit of Peace, 1963). Também não nos esqueçamos que as pretensas sociedades sem Estado, ao contrário dos idílios de Rousseau, são pequenas sociedades, fracas e muitas vezes miseráveis, dependentes de um dado natural raramente generoso e clemente. É evidente que esta peregrinação quase ecológica por um tempo, total ou parcialmente, incógnito, que tanto podemos designar por sociedade primitiva como por estado de natureza tem, sobretudo, a comodidade de nos fazer repensar os laços políticos que temos e de os historicizarmos, isto é, de os considerarmos como simples ponto de passagem entre um antes e um depois, entre um passado longinquamente mítico e um futuro insusceptível de ser profetizado.