domingo, 3 de junho de 2007

Tchaadaev, Piotr (1794-1856)

Antigo hussardo que em Carta Filosófica, de 1829-1831, tenta construir, mas ainda à maneira germanista de Herder, a primeira história do mundo em redor do povo russo. Com efeito, até então, os eslavos eram considerados povos sem história, circunstância que andava directamente ligada à circunstância de não haver um suficiente desenvolvimento da teoria da linguagem. Na verdade, só em 1783 é que a Academia decidiu elaborar um dicionário e uma gramática da língua russa, desencadeando um processo que vai levar a que, logo nos começos do século XIX, o russo se tenha transformado em língua literária. É a partir de meados da década de trinta do século XIX que Tchaadaev vai lançar o movimento de defesa da comunidade ('soborrnost'), ponto de partida para o esforço de russificação que, meio século depois, levará Alexandre III, a partir de 1887, a determinar que, nas universidades, apenas possa ensinar-se em russo. Para Tchaadaev, todos reconhecerão que o homem não tem outro destino neste mundo senão trabalhar pela destruição da sua personalidade e sua substituição por uma existência social e impessoal. Dizia também que metidos no nosso casulo [...] permanecemos fora das grandes aventuras do mundo [...] mantivemo-nos abrigados debaixo dos nossos telhados de madeira e de colmo. Mais: vindos ao mundo como filhos ilegítimos, sem herança e sem ligação com os homens que nos precederam à face da terra, nada temos nos nossos corações dos ensinamentos anteriores às nossas próprias existências. O que é hábito e instinto nos outros povos, temos nós de meter às marteladas nas nossas cabeças. Somos, a bem dizer, estrangeiros a nós próprios. Marchamos no tempo, por forma tão singular que, à medida do nosso avanço, a véspera foge-nos para sempre consequência natural duma cultura de importação e de imitação. Entre nós não há desenvolvimento íntimo, progressão natural; as ideias novas varrem as antigas, porque não provêm delas: surgem não se sabe donde. Porque não acolhemos senão ideias feitas, não marca as nossas inteligências o sulco inapagável que todo movimento progressivo grava nos espíritos e que faz a sua força. Crescemos, mas não amadurecemos. Contudo, baseado nestas razões, acaba, paradoxalmente, por ser favorável a uma conversão da Rússia ao catolicismo. Trata-se, como assinala Besançon, de uma historiografia de tipo gnóstico, com os dois princípios e os três tempos do maniqueísmo, mas, em vez de serem apresentados através de uma mitologia, são-no através de uma história pretensamente real, objecto de ciência constatável. É o que assinala a passagem de um pensamento gnóstico a um pensamento ideológico. Assim, esta ficção que se recusa a ser uma ficção, que se apoia nos Padres e na realidade, torna-se uma ficção em dois graus, quase impossível de assinalar. No fundo, Tchaadaev pretendia aplicar à Rússia, de forma bem patriótica, as teses do destino manifesto e da missão nacional que o nascente romantismo ocidental ensaiava para outras pátrias. Assim, vem falar na potencialidade da Rússia e da sua não revelação, correspondendo-se com personalidades ocidentais como Joseph de Maistre e Louis Bonald, dois eminentes teóricos contra-revolucionários, bem como com Schelling. Para o autor russo em análise, nunca marchámos com os outros povos, não pertencemos a nenhuma das outras famílias do género humano. Não somos nem do Oriente nem do Ocidente, nem nos dizem respeito as tradições de um ou do outro. Apesar destas relações de filiação ideológica, as teses da Rússia como explosão retardada foram consideradas pelas autoridades russas como revolucionárias, pelo que o respectivo autor não só foi silenciado pela censura, como também considerado oficialmente louco, sendo condenado a vigilância médica.
Retirado de Respublica, JAM