quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

John Rawls

John Rawls (21 de Fevereiro de 1921 - 24 de Novembro de 2002) foi um professor de filosofia política na Universidade de Harvard, autor de Uma teoria da justiça (A Theory of Justice, 1971), Political Liberalism (1993), e The Law of Peoples.
Justiça
A teoria da justiça de Rawls é extremamente influente no meio acadêmico e práticas consoantes com a mesma já fazem parte das políticas públicas de vários países, entre os quais se encontra o Brasil.
Política
A teoria política de Rawls fundamenta-se na prioridade do justo sobre o bem. Isto quer dizer duas coisas: 1) as liberdades individuais, embora prioritárias, devem ser complementares aos anseios por igualdade e 2) os princípios da justiça têm de ser independentes de qualquer conceição particular de vida boa.
Frases sobre Rawls e sua Teoria da Justiça
Jürgen Habermas: “Uma teoria da justiça de John Rawls marca uma cesura na história mais recente da filosofia prática. Com essa obra, Rawls reabilitou as questões morais reprimidas durante muito tempo e apresentou-as como objeto de pesquisas científicas sérias”.
Ronald Dworkin: “Nos Estados Unidos, o impacto da Teoria da justiça de John Rawls sobre a teoria e a prática jurídica foi absolutamente surpreendente. Desde sua publicação, as revistas jurídicas se encheram de referências à obra de Rawls”.
Otfried Höffe: “O grande mérito de John Rawls é o de haver reanimado o discurso sobre a justiça e de haver feito dela um tema central da discussão interna e externa aos círculos filosóficos”.
Michael Walzer: “Ninguém que escreva sobre justiça hoje em dia pode deixar de reconhecer e admirar as conquistas de John Rawls”.
Robert Nozick: “Os filósofos políticos precisam agora trabalhar dentro da teoria de Rawls ou explicar por que não o fazem”.
Philippe Van Parijs: “[...] um êxito excepcional, [o] tratado de filosofia mais lido do século XX, ponto de partida de uma literatura secundária tão abundante que é impossível dar uma relação detalhada da própria apesar de ter passado apenas vinte anos”.
Serge-Christophe Kolm: “A mais célebre obra contemporânea sobre ética social é Uma teoria da justiça, de Rawls, livro que acabou por tornar-se um fenômeno social”.
Roberto Gargarella: “Este [meu] trabalho [As teorias da Justiça depois de Rawls] tem como objetivo examinar a evolução das teorias da justiça, por conseguinte da “revolução teórica” provocada pela publicação da Teoria da Justiça de John Rawls em 1971”.
Atílio Boron: “A obra de John Rawls foi consagrada pela literatura de finais dos anos de 1990 como verdadeiro divisor de águas na história da filosofia política do século XX. Fala-se em “antes” e “depois” da publicação de Teoria da Justiça”.
André Berten: “A publicação em 1971 da Teoria da Justiça de John Rawls constitui uma espécie de “manifesto” desta nova exigência de refletir sobre as questões de justiça e de reintroduzir a dimensão normativa no seio da filosofia política. Esta publicação está na origem de uma renovação espetacular da filosofia anglo-saxã”.
Luiz Paulo Rouanet: “A primeira e mais importante teoria da justiça contemporânea é, naturalmente, a formulada por John Rawls, em seu A theory of justice. Muito tem se escrito e falado a respeito, e Rawls constitui uma referência obrigatória no campo da filosofia política”.
Cecilia Caballero Lois: “É inserido nesse contexto [de retomada de questões normativas ligadas à justiça] que Rawls, em 1971, publica Uma teoria da justiça, que o consagra como um dos mais importantes filósofos do séc. XX”.
Nythamar de Oliveira: “John Rawls tem sido considerado o mais importante pensador político da segunda metade do século XX”.
EXCERTO COM EXPLICAÇÂO
3. Dimensões da acção humana e dos valores 3.1. A dimensão ético-política – análise e compreensão da experiência convivencial 3.1.4. Ética, direito e política - Liberdade e justiça social - Igualdade e diferenças - Justiça e equidade PROBLEMA: «Como é possível uma sociedade justa»? BIBLIOGRAFIA: - John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Editorial Presença, Lisboa, 1993 - João Lopes Alves, Ética & Contrato Social, Edições Colibri, Lisboa, 2005 - Victoria Camps, Historia de la Ética (3), Editorial Crítica, Barcelona, 1989 - James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, Gradiva, Lisboa, 2003 O NEOCONTRATUALISMO DE JOHN RAWLS
«Imagine-se que afastamos todas as bases tradicionais da moralidade. Suponha-se, primeiro, que não existe Deus para emitir mandamentos e recompensar a virtude; e, segundo, que não há «factos morais» integrados na natureza das coisas. Suponha-se, ainda, que negamos o carácter naturalmente altruísta dos seres humanos e encaramos as pessoas como essencialmente motivadas pela defesa dos seus próprios interesses. Qual é, pois, a origem da moralidade? Se não podemos apelar para Deus, nem para os «factos morais», nem para o altruísmo natural, restará alguma coisa sobre a qual a moralidade se possa fundar?» (Rachels, James, o.c., pág. 203-204).
1. O contexto
As mais polémicas e influentes obras dos grandes (e pequenos!) filósofos têm aparecido, de um modo geral, em épocas de crise sócioeconómica acentuada associadas a grandes transformações económicas. Vamos servir-nos de alguns exemplos para, a partir deles, podermos compreender melhor a proposta ética de John Rawls, um filósofo americano do século XX. No século IV a. C., Aristóteles, numa das fases mais difíceis e controversas da democracia ateniense, escreveu Ética a Nicómaco e Política, duas obras que, interpretadas pelos filósofos da Idade Média e pelos modernos, vieram a marcar profundamente todo o pensamento ético-político ocidental. Nos séculos XVII-XVIII, em plena época da expansão europeia por todos os continentes e consequentes Revolução Industrial e Movimento Iluminista, surgem vários filósofos cujas ideias foram marcantes para a discussão aprofundada e racionalmente fundamentada da legitimidade do poder político. Entre eles, Thomas Hobbes publica Leviatã; John Locke, o Ensaio Sobre a Verdadeira Origem, extensão e fim do GOVERNO CIVIL (1689); Jean-Jacques Rousseau, em plena época iluminista, publica o Contrato Social e o Discurso sobre a Origem e Fundamentos da DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS; Kant, uma das mais esclarecidas figuras do iluminismo alemão, publica, entre outras, a FUNDMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES; John Stuart Mill, escreve o UTILITARISMO. Por fim, após as duas grandes guerras que devastaram o mundo e ceifaram a vida a milhões de inocentes, surge a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, uma espécie de catecismo onde constam os direitos fundamentais da pessoa humana, independentemente da sua raça, religião, cor, cultura, sistema político, etc., a qual recolhe, ampliando-os, os direitos que as sucessivas lutas da grande maioria dos deserdados da sorte (explorados) acabaram por conquistar. Estamos a referir-nos às três gerações de direitos, que Norberto Bobbio tão claramente expõe na sua obra, já clássica, A ERA DOS DIREITOS. Com o fim da segunda grande guerra, enquanto a Europa Ocidental se ia democratizando lentamente, os países da Europa oriental permitiram a sovietização do regime político-social enveredando pela experiência marxistaleninista (1917) de um centralismo democrático, isto é, de uma ditadura do proletariado. Surge a formação de dois blocos defensivos, que mutuamente se odiavam, e a guerra-fria, com os EUA e a URSS à cabeça, cujo objectivo final era o domínio do planeta sem atender à natureza dos meios usados para o conseguir. É neste ambiente de paz super-armada, com potentíssimas ogivas nucleares e sofisticados meios de espionagem, que alguns filósofos reflectem e apresentam novas propostas para uma nova ordem mundial, mediante a qual as ogivas nucleares e o ódio entre as superpotências fossem substituídos por diálogos pacificadores construtivos e promotores de paz e bem-estar entre os povos. A obra de John Rawls, UMA TEORIA DA JUSTIÇA, foi publicada em 1971, dando origem a um dos mais acesos, acaloradas e originais debates intelectuais verificados no século XX sobre o problema ético-político. Dada a complexidade e extensão da obra de Rawls, imprópria para alunos do ensino secundário, vamos limitar este trabalho à apresentação de alguns dos seus mais importantes pressupostos teóricos.
2. Os pressupostos teóricos
2.1. O primado da justiça («justiça como equidade») Rawls começa por construir a sua teoria estabelecendo a prioridade absoluta da justiça, afirmado que sendo «a justiça a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento», não pode ser objecto de qualquer compromisso. E continua afirmando que se «uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira», assim também «as leis e as instituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas». E a sua convicção pelo respeito da pessoa humana leva-o a afirmar categoricamente que «cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bemestar da sociedade como um todo poderá ser eliminada». E conclui, dizendo que «a justiça impede que a perda da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem a partilhar um bem maior». Rawls concebe a sociedade como um todo e as instituições como corpos, (afastando-se, deste modo, do tradicional utilitarismo que caracteriza as sociedades anglo-saxónicas, para se aproximar do deontologismo de Kant, do qual, aliás, se considera seguidor): «um sistema de cooperação concebido para fundamentar o bem dos que nele participam». No entanto, não obstante conceber a sociedade como um todo, Rawls afirma que «se há vantagens na cooperação também existem conflitos e identidade de interesses». E porque há identidade e conflito de interesses, é necessário estabelecer um conjunto de princípios que tornem possível a ordenação social. É deste modo que introduz os princípios da justiça social: Uma vez que, ao contrário dos contratualistas clássicos (Locke, Rousseau e Kant) que se situavam no estado de natureza, Rawls parte das sociedades modernas democrático-liberais para construir a sua concepção de justiça, não obstante acentuar que «as sociedades existentes raramente estão bem ordenadas…, dado que a determinação do que é justo ou injusto é normalmente objecto de disputa»: «Embora uma sociedade seja uma tentativa de cooperação que visa obter vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada, simultaneamente, tanto por um conflito como por uma identidade de interesses. Há identidade de interesses uma vez que a cooperação torna possível uma vida que, para todos, é melhor do que aquela que cada um teria se tivesse de viver apenas pelos seus próprios esforços. Há conflito de interesses uma vez que os sujeitos não são indiferentes à forma como são distribuídos os benefícios acrescidos que resultam da sua colaboração, já que, para prosseguirem os seus objectivos, todos preferem receber uma parte maior dos mesmos. É necessário um conjunto de princípios que permitam optar por entre as diversas formas de ordenação social que determinam esta divisão dos benefícios, bem como obter um acordo sobre a repartição adequada dos mesmos. Estes princípios são os da justiça social: são eles que fornecem um critério para a atribuição de direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social». Rawls defende a concepção de justiça como equidade, opondo-se à concepção utilitarista, por ele considerada demasiado limitada no que se refere aos fins prosseguidos. Partindo do contratualismo clássico, mas generalizandoo para o elevar a um mais alto grau de compreensão, poderíamos fazer a seguinte pergunta: «Como chegar a um acordo unânime sobre os princípios que devem organizar e acabar com o “desacordo” (no sentido amplo de conflito de interesses)? Tal como está formulada, a pergunta leva-nos a pensar que o problema fundamental de uma teoria da justiça consiste na necessidade de “buscar os princípios mais adequados para realizar a liberdade e a igualdade” entre todos os elementos da sociedade tomada como um todo. Esses princípios devem ser escolhidos por unanimidade a partir de uma posição original subordinada a determinadas condicionantes.
2.2. A posição original e o “véu de ignorância”
« O meu objectivo é apresentar uma concepção da justiça que generaliza e eleva a um nível superior a conhecida teoria do contrato social, desenvolvida, entre outros, por Locke, Rousseau e Kant. Para o fazer, não vamos conceber o contrato original como aquele que permite a adesão a uma sociedade determinada ou que estabelece uma determinada forma de governo. A ideia condutora é antes a de que os princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica formam o objecto do acordo original. Esses princípios são os que seriam aceites por pessoas livres e racionais, colocadas numa situação inicial de igualdade e interessadas em prosseguir os seus próprios objectivos, para definir os termos fundamentais da sua associação. São estes princípios que regulamentam os acordos subsequentes; especificam as formas da cooperação social que podem ser introduzidas, bem como as formas de governo que podem ser estabelecidas. É a esta forma de encarar os princípios da justiça que designo por teoria da justiça como equidade».
Rawls considera-se um seguidor de Kant e, consequentemente, defensor de uma determinada concepção de pessoa dela derivando os princípios da justiça servindo-se da metodologia kantiana da “construção”. O elemento mediador entre a concepção de pessoa e os princípios da justiça é a posição original ou situação inicial de igualdade e de liberdade, que, mais ou menos, corresponde ao estado de natureza do contratualismo clássico e na qual se vão escolher os princípios que deverão regular a concepção da justiça numa “sociedade bem ordenada”. A pessoa é considerada como um ser simultaneamente livre e igual, capaz de agir quer razoável quer racionalmente. O razoável refere-se ao reconhecimento do exercício dos fins próprios e pessoais à luz dos fins moralmente justificados dos outros; o racional refere-se à acção orientada para a satisfação dos desejos e dos fins de um agente, isto é, os interesses e os fins dos outros só interessam na medida em que afectarem a promoção do meu próprio interesse, daquilo que é bom para mim; numa palavra, o outro é considerado como um meio e não como um fim em si mesmo. «Na teoria da justiça como equidade, a posição da igualdade original corresponde ao estado natural na teoria tradicional do contrato social. Esta posição original não é, evidentemente, concebida como uma situação histórica concreta, muito menos como um estado cultural primitivo. Deve ser vista como uma situação puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma certa concepção da justiça. Entre essas características essenciais está o facto de que ninguém conhece a sua posição na sociedade, a sua situação de classe ou estatuto social, bem como a parte que lhe cabe na distribuição dos atributos e talentos naturais, como a sua inteligência, a sua força e mais qualidades semelhantes. Parto inclusivamente do princípio de que as partes desconhecem as suas concepções do bem ou as suas tendências psicológicas particulares. Os princípios da justiça são escolhidos a coberto de um véu de ignorância. Assim se garante que ninguém é beneficiado ou prejudicado na escolha daqueles princípios pelos resultados do acaso natural ou pela contingência das circunstâncias sociais».
Como vemos, a posição original não passa de uma simples situação hipotética ou construção heurística, muito próxima do estado de natureza do contratualismo clássico, embora dele bastante diferente. O objectivo da posição original consiste
• Em saber compatibilizar as duas capacidades ou poderes da pessoa moral – o racional e o razoável – no momento da escolha dos princípios da justiça que devem regular uma sociedade bem ordenada;
• Numa sociedade bem ordenada, o justo ou razoável deve subordinar o elemento racional ou a busca teleológica do bem (utilitarismo);
• A representação da subordinação do razoável ao racional consegue-se restringindo a promoção do interesse próprio (o bem) de modo a garantir-nos uma justiça como imparcialidade ou equitativa. Numa palavra, “as partes aparecem como motivadas para promover a sua concepção do bem, mas submetidas a um conjunto de condicionantes formais que os forçam a manter-se no umbral da imparcialidade. Então, apresenta-se-lhes um conjunto de alternativas entre distintas concepções de justiça, tendo de escolher, por unanimidade, uma delas por um processo de escolha racional…” (História de la Ética, pág. 587).
Na posição original, os participantes, além de se desconhecerem mutuamente, desconhecem qualquer informação particular relativa à sua situação na sociedade – classe social, poder económico, grau de inteligência, força e noção do Bem. Daqui resulta que todos os participantes estão em situação semelhante: «Uma vez que todos os participantes estão em situação semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios que beneficiem a sua situação particular, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou negociação equitativa. Dadas as circunstâncias da posição original, a simetria das relações que entre todos se estabelecem, esta situação inicial coloca os sujeitos, vistos como entidades morais, isto é, como seres racionais com finalidades próprias e - parto desse princípio - capazes de um sentido da justiça, numa situação equitativa} Pode dizer-se que a posição original constitui o statu quo inicial adequado, pelo que os acordos fundamentais estabelecidos em tal situação são equitativos.
Isto explica a propriedade da designação «justiça como equidade»: ela transmite a ideia de que o acordo sobre os princípios da justiça é alcançado numa situação inicial que é equitativa. Não decorre daqui que os conceitos de justiça e de equidade sejam idênticos, tal como também não decorre da frase «a poesia como metáfora» que os conceitos de poesia e de metáfora o sejam».
No entanto, perante as limitações impostas aos participantes, como é que podem decidir sobre qual a concepção de justiça que lhes é mais vantajosa? Rawls esboça a sua teoria dos bens primários, isto é, dos bens que presumivelmente são mais desejados por excesso que por defeito com o fim de satisfazer a consecução dos distintos projectos básicos ou “planos de vida” que dão sentido à existência em sociedade e com os quais se consegue a satisfação equilibrada dos interesses das pessoas. Como bens primários, refere os direitos e as liberdades, as oportunidades e poderes, os ganhos e as riquezas, o auto-respeito e a auto-estima.
2.3. Os princípios da justiça: princípios da igualdade e da diferença
«A teoria da justiça como equidade inicia-se (…) com uma das escolhas de âmbito mais geral que é possível efectuar em sociedade, isto é, com a escolha dos primeiros princípios que definem uma concepção da justiça, a qual determinará todas as críticas das instituições e as respectivas possibilidades de reforma ulteriores. Uma vez adoptada uma concepção da justiça, podemos supor que serão escolhidos a constituição, um sistema de produção de leis e assim por diante, escolhas essas a efectuar de acordo com os princípios da justiça inicialmente adoptados. A nossa situação social é justa quando o sistema de regras gerais que a define foi obtido através desta série de acordos hipotéticos.
Além disso, se admitirmos que a posição original determina efectivamente um conjunto de princípios (isto é, que uma concepção particular da justiça aí seria escolhida), é verdadeira a afirmação de que, sempre que as instituições sociais satisfazem esses princípios, aqueles que nelas participam podem afirmar que as relações de cooperação que estabelecem obedecem a termos com os quais concordariam se fossem pessoas livres e iguais cujas relações recíprocas fossem equitativas» Rawls afirma que, na posição original, todos os participantes se encontram num típico suposto de decisão sob incerteza favorável à adopção da regra maximin, isto é, a maximização dos mínimos, tal como acontece em qualquer jogo.
Esta regra leva à preferência de uma distribuição dos bens primários que, efectivamente, tenha como ponto de referência o interesse dos menos favorecidos. Desta forma, opta-se por um princípio geral de distribuição igualitária, a não ser que se verifique que se pode ganhar no caso de favorecer algumas excepções a esta regra geral. «Afirmo, pelo contrário, que os sujeitos colocados na situação inicial escolheriam dois princípios bastante diferentes: o primeiro exige a igualdade na atribuição dos direitos e deveres básicos, enquanto o segundo afirma que as desigualdades económicas e sociais, por exemplo as que ocorrem na distribuição da riqueza e poder, são justas apenas se resultarem em vantagens compensadoras para todos e, em particular, para os mais desfavorecidos membros da sociedade.
Decorre destes princípios que as instituições não podem ser justificadas pelo argumento de que as dificuldades de alguns são 7 compensadas por um maior bem total. Pode, em certos casos, ser oportuno que alguns tenham menos para que outros possam prosperar, mas tal não é justo. Porém, não há injustiça no facto de alguns conseguirem benefícios maiores que outros, desde que a situação das pessoas menos afortunadas seja, por esse meio, melhorada». Seja em que circunstâncias for, os bens da liberdade e da igualdade de oportunidades, por serem essenciais para a realização dos sistemas básicos da personalidade, nunca se encontram em situação de excepção. A dignidade humana não tem preço e não admite regateio! Quanto aos ingressos e riqueza ou outros bens de natureza sócioeconómica, admite-se uma regra de distribuição desigualitária só e só se tal beneficiar os mais desfavorecidos. Desta forma, facilitam-se determinados critérios de eficiência que todos os participantes considerariam justos e razoáveis: é o princípio da diferença.
«Vou agora apresentar, de uma forma ainda provisória, os dois princípios da justiça que, julgo, seriam escolhidos na posição original. A primeira formulação destes princípios constitui um simples esboço. À medida que formos avançando irei analisar as diversas concepções, aproximando-me gradualmente da apresentação final, que será feita muito mais adiante. Creio que, deste modo, a exposição se fará de forma natural.
A primeira apresentação dos dois princípios é a seguinte:
Primeiro Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras.
Segundo As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que, simultaneamente:
a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam em benefício de todos;
b) decorram de posições e funções às quais todos têm acesso. (…).
Estes princípios aplicam-se, em primeiro lugar, como ficou dito, à estrutura básica da sociedade, presidem à atribuição de direitos e deveres e regulam a distribuição de benefícios económicos e sociais. A formulação pressupõe que, para os efeitos da teoria da justiça, a estrutura social seja vista como tendo duas partes mais ou menos distintas, à primeira das quais se aplica o primeiro princípio, aplicando-se o segundo princípio à outra. Assim, distinguiremos os aspectos do sistema social que definem e garantem iguais liberdades básicas e os que especificam e estabelecem as desigualdades económicas e sociais.
É essencial observar que é possível estabelecer um elenco das liberdades básicas. Entre elas contam-se, como particularmente importantes:
1. a liberdade política (direito de votar e de ocupar uma função pública) e a liberdade de expressão e de reunião;
2. a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proibição da opressão psicológica e da agressão física (direito à integridade pessoal);
3. o direito à propriedade privada e à protecção face à detenção e à prisão arbitrárias, de acordo com o princípio do domínio da lei (rule of law).
E, de acordo com o primeiro princípio, estas liberdades devem ser iguais para todos». Se todas as pessoas têm igual direito ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais compatível com um sistema similar de liberdade para todos, então, podemos considerar como liberdades básicas dos cidadãos os seguintes direitos: liberdade política, liberdade de pensamento, liberdade de consciência, liberdade de expressão e de associação, liberdade de propriedade pessoal, proibição da prisão arbitrária e da expropriação.
«O segundo princípio aplica-se, numa primeira abordagem, à distribuição da riqueza e do rendimento e à concepção das organizações que aplicam as diferenças de autoridade e responsabilidade. Embora a distribuição da riqueza e do rendimento não tenha de ser igual, ela deve ser feita de modo a beneficiar todos e, simultaneamente, as posições de autoridade e responsabilidade devem ser acessíveis a todos. O segundo princípio é aplicado facultando o acesso a esses lugares e, em seguida, respeitando esse limite, distribuindo as desigualdades económicas e sociais por forma a que todos com ela beneficiem.
Estes princípios devem ser dispostos numa ordenação serial, tendo o primeiro prioridade sobre o segundo. Esta ordenação significa que as violações das liberdades básicas iguais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas, ou compensadas, por maiores vantagens económicas e sociais. Tais liberdades têm um âmbito central de aplicação dentro do qual só podem ser limitadas, ou ser objecto de compromisso, quando entrem em conflito com outras liberdades básicas». Neste segundo princípio, a igualdade aparece-nos numa perspectiva de “coexistência pacífica” ou de “tolerância”. A actualidade deste segundo princípio é indiscutível quer no que se refere às relações entre os estados ricos e pobres, quer no que diz respeito às sociedades cada vez mais multiculturais: direito à diferença ou princípio da diferença, realização da distribuição da riqueza e do lucro de acordo com as liberdades de igual cidadania e igualdade de oportunidades.
3. A desobediência civil
De acordo com as diferentes teorias do contrato social, poderemos formular a seguinte pergunta: Estará o cidadão obrigado a obedecer a todas as leis? Terá o cidadão o direito de desafiar a própria lei, desobedecendo-lhe? Estarás lembrado de alguns casos célebres de desobediência civil universalmente conhecidos: Gandi, o líder da independência da Índia contra a soberania britânica; Martin Luther King, que liderou a luta dos negros norteamericanos contra a lei da discriminação racial; Nelson Mandela, na África do Sul, liderou a luta contra o poderio dos brancos no regime do Apartheid.
O que é a desobediência civil? Antes de mais, convém dizer que a desobediência civil só se verifica “numa sociedade quase justa que, no essencial, seja bem ordenada, mas na qual, não obstante, ocorrem sérias violações da justiça”. Portanto, só nas sociedades democráticas, mais ou menos justas, pode surgir o problema da desobediência civil em que os cidadãos reconhecem e aceitam a legitimidade da constituição.
Parece haver aqui um conflito de deveres: quando é que o dever de cumprir as leis adoptadas por uma assembleia maioritária deixa de ser vinculativo para um cidadão que também considera seu dever lutar contra as injustiças sociais cuja origem se encontra na lei? Uma teoria da desobediência civil divide-se em três partes:
• Define este tipo de dissidência.
• Estabelece os fundamentos e as condições em que a desobediência civil é justificada.
• Explica o papel da desobediência civil num sistema constitucional e analisa a justificação desta forma de protesto numa sociedade livre.
Vejamos, muito resumidamente, o que Uma Teoria da Justiça de Rawls nos diz sobre estes temas.
3.1. Definição de desobediência civil
«… esta teoria é concebida apenas para o caso especial de uma sociedade quase justa, que, no essencial, seja bem ordenada, mas na qual, não obstante, ocorram sérias violações da justiça. Dado que parto do princípio de que um estado de quase justiça exige um regime democrático, a minha teoria diz respeito ao papel e à justificação da desobediência civil a uma autoridade democrática legitimamente estabelecida» (…).
«O problema da desobediência civil, como eu a interpreto, surge apenas num estado democrático mais ou menos justo e para aqueles cidadãos que reconheçam e aceitem a legitimidade da constituição. A dificuldade que aqui se coloca é a de um conflito de deveres. Em que momento deixa de ser vinculativo o dever de cumprir leis adoptadas por uma assembleia maioritária (ou actos do executivo apoiados por tal maioria) quando confrontado com o direito a defender as nossas liberdades individuais e o dever de lutar contra a injustiça?
Esta questão envolve a natureza e limites do princípio do governo pela maioria. Por esta razão, o problema da desobediência civil constitui um teste crucial para qualquer teoria do fundamento moral da democracia».
a. « Começarei por definir a desobediência civil como um acto público, não violento, decidido em consciência mas de natureza política, contrário à lei e usualmente praticado com o objectivo de provocar uma mudança nas leis ou na política seguida pelo governo. Ao agir desta forma, apelamos ao sentido de justiça da maioria da 10 comunidade e declaramos que, na nossa opinião ponderada, os princípios da cooperação social entre homens livres e iguais não estão a ser respeitados».
b. « Deve também notar-se que a desobediência civil é um acto político, não apenas no sentido que se dirige à maioria que detém o poder político, mas também porque é um acto guiado e justificado por princípios políticos, isto é, por princípios da justiça que regem a constituição e as instituições sociais em geral. Ao justificar a desobediência civil, não apelamos aos princípios da personalidade moral ou às doutrinas religiosas, embora estas possam coincidir e apoiar as nossas pretensões; e não vale a pena recordar que a desobediência civil não pode ser fundamentada apenas no interesse pessoal ou de grupo. Em seu lugar, invocamos a concepção da justiça comummente partilhada que subjaz à ordem política. Partimos do princípio de que num regime democrático razoavelmente justo há uma concepção política da justiça, por referência à qual os cidadãos resolvem as suas questões políticas e interpretam a constituição. A violação persistente e deliberada dos princípios básicos desta concepção durante um período de tempo extenso, em especial a lesão das liberdades fundamentais, convida à submissão ou à resistência. Ao desencadear a desobediência civil, a minoria força a maioria a decidir se quer que os seus actos sejam assim interpretados ou se, tendo em vista o senso comum da justiça, deseja reconhecer as exigências legítimas da minoria».
c. A desobediência civil constitui, além disso, um acto público. Não só apela a princípios públicos como é praticado publicamente. Participa-se nela abertamente, fazendo-a anteceder de um razoável aviso prévio: não é uma acção secreta ou camuflada. Podemos compará-la a um discurso público, e, tratando-se de uma forma de apelo público, da afirmação de uma profunda e consciente convicção política, ela tem lugar no fórum público. Por esta razão, entre outras, a desobediência civil não é violenta. Tenta evitar o uso da violência, em especial contra as pessoas, não pela recusa de princípio em recorrer à força, mas porque esta constitui a expressão final a sua reivindicação. Efectuar actos de violência susceptíveis de ferir e de causar mal é incompatível com a desobediência civil enquanto forma de apelo. Na verdade, qualquer interferência com as liberdades de outrem tende a esconder a natureza de desobediência civil da acção em causa. Há também outra razão para que a desobediência civil não seja violenta. Ela expressa a desobediência à lei dentro dos limites da fidelidade ao direito, embora se situe na respectiva fronteira. A lei é violada mas a fidelidade ao direito é expressa pela natureza pública e não violenta do acto, pela vontade de aceitar as consequências jurídicas da nossa conduta. Esta fidelidade à lei ajuda a provar à maioria que o acto é na verdade politicamente consciente e sincero e que visa apelar ao sentido público da justiça. (…)
O facto de sermos completamente transparentes e não violentos constitui uma garantia da nossa sinceridade, já que não é fácil convencer os outros de que os nossos actos são conscientes ou sequer termos nós próprios a certeza de que assim é».
Como acto público, a desobediência civil não é violenta. Pelo contrário, apresenta-se como paradigma de não violência.
3.2. Fundamentos e justificação da desobediência civil
Em que circunstâncias ou sob que condições é que a desobediência civil tem justificação? «O primeiro ponto respeita aos tipos de injustiça que constituem causas adequadas de desobediência civil. Se virmos essa desobediência como um acto político que se dirige ao sentido de justiça da comunidade, parece razoável que, em igualdade de circunstâncias, ela seja limitada às situações de injustiça substancial e clara, e de preferência àquelas que obstam à remoção de outras injustiças. Por esta razão, podemos presumir que os actos de desobediência civil serão restringidos às infracções sérias ao primeiro princípio da justiça, ao princípio da igualdade e às violações evidentes da segunda parte do segundo princípio, o da igualdade equitativa de oportunidades. É claro que nem sempre é fácil verificar se estes princípios são cumpridos». «Uma segunda condição da desobediência civil é a seguinte. Suponhamos que os apelos normais à maioria política existente foram já feitos sem sucesso. As formas legais de correcção da situação a nada conduziram. Assim, por exemplo, os partidos políticos existentes mostraram-se indiferentes às pretensões da minoria ou não se dispuseram a satisfazê-las. As tentativas para fazer com que a lei fosse revogada foram ignoradas e os protestos e demonstrações legalmente permitidos não tiveram sucesso. Dado que a desobediência civil constitui o último recurso, devemos estar seguros de que ela é necessária». «A terceira e última condição que vou abordar pode ser assaz complicada. Ela decorre do facto de, apesar de as duas condições anteriores serem muitas vezes suficientes para justificar a desobediência civil, tal nem sempre se verifica. Em certas circunstâncias, o dever natural de justiça pode exigir uma certa autolimitação. Podemos ver este facto pelo exemplo seguinte. Se uma determinada minoria tiver razões que justifiquem a desobediência civil, qualquer outra minoria que esteja em condições idênticas terá igualmente justificação para o fazer. Aplicando as duas condições anteriores como critério para determinar a identidade de condições relevantes, podemos dizer que, em igualdade de circunstâncias, duas minorias podem justificadamente recorrer à desobediência civil se sofrerem, por idêntico período de tempo, do mesmo grau de injustiça e se os seus sinceros apelos políticos normais não tiverem qualquer resposta. É concebível, no entanto, ainda que tal seja improvável, que podem existir muitos grupos com razões idênticas (no sentido indicado) para recorrerem à desobediência civil; mas, se eles agissem todos da mesma forma, a grave desordem que se seguiria poderia dificultar a aplicação da constituição justa. Parto do princípio, neste ponto, de que há um limite à extensão que a desobediência civil pode assumir sem que haja uma ruptura no respeito pela lei e pela constituição, que abriria caminho a consequências negativas para todos. Há também um limite superior à capacidade da vida pública para lidar com tais formas de contestação; o apelo que os grupos que recorrem à desobediência pretendem fazer pode ser distorcido e a sua intenção de recorrer ao sentido da justiça da maioria é ignorada. Por uma ou por ambas estas razões, a eficácia da desobediência civil como forma de protesto declina para lá de certo ponto; e aqueles que pensam a ela recorrer têm de ter estes limites em conta».
3.3. O papel da desobediência civil
Qual o papel da desobediência civil num sistema constitucional e num regime democrático? Não significará, em última instância, a derrota do próprio regime democrático e do sistema constitucional consequência da posição original? Não será a desobediência civil uma ameaça à estabilidade do poder legitimamente constituído e um convite à anarquia tão ao gosto de determinados movimentos ditos de “esquerda”?
Recordemos que a desobediência civil só é possível
• numa sociedade considerada quase justa;
• numa sociedade que possui uma forma de governo democrático.
Numa sociedade de direito divino, «os súbditos só têm direito à súplica e, se a decisão final for desfavorável, não podem desobedecer… Contudo, numa sociedade considerada como uma forma de cooperação entre iguais, aqueles que são vítimas de injustiça séria não são obrigados à submissão. Na verdade, a desobediência civil (…) é um dos mecanismos estabilizadores de um sistema constitucional, embora seja, por definição, um mecanismo ilegal». «Juntamente com as eleições livres e regulares e um poder judicial independente, competente para interpretar a constituição (a qual não tem de ser escrita), a desobediência civil, quando utilizada de forma moderada e ponderada, ajuda a manter e a fortalecer as instituições justas. Ao resistir à injustiça, dentro dos limites do direito, ela serve para impedir os desvios face às regras da justiça e para os corrigir caso ocorram. O facto de os cidadãos estarem em geral dispostos a recorrer à desobediência civil justificada é um elemento de estabilidade numa sociedade bem ordenada ou que seja quase justa.
É necessário encarar esta doutrina na perspectiva dos sujeitos na posição original. Há dois problemas, relacionados entre si, que eles têm de resolver:
1. o primeiro está em que, tendo escolhido os princípios aplicáveis aos indivíduos, devem elaborar orientações para avaliar a importância dos deveres naturais e das obrigações e, em particular, a importância do dever de obedecer a uma constituição justa e a uma das suas regras básicas, a regra do governo pela maioria.
2. o segundo problema é o de encontrar princípios razoáveis para lidar com situações injustas ou com circunstâncias nas quais a obediência aos princípios justos seja apenas parcial. (…).Como a doutrina contratualista salienta, os princípios da justiça dizem respeito à cooperação voluntária entre iguais. Recusar a justiça a outrem equivale a recusar reconhecê-lo como igual (alguém relativamente ao qual estamos dispostos a limitar as nossas acções, de acordo com princípios que escolheríamos numa situação de igualdade que fosse equitativa), ou manifestar a vontade de explorar as contingências da fortuna natural e do acaso em nosso próprio benefício».
A teoria do neocontratualismo «tenta formular as bases sobre as quais a autoridade democrática legítima pode ser contestada, por formas que, sendo contrárias à lei, expressam, no entanto, fidelidade ao direito e apelam aos princípios políticos fundamentais do regime democrático. Assim, às formas jurídicas do constitucionalismo podemos acrescentar certas formas de protesto ilegal que, dados os princípios que as orientam, não violam os objectivos da constituição democrática».
Quanto à questão inicialmente levantada que considera a desobediência civil como um convite à anarquia, atentemos nalgumas das ideias defendidas por Rawls: «Ainda que normalmente procuremos conselhos e orientações, e aceitemos as ordens dos que ocupam posições de autoridade quando elas parecem razoáveis, somos sempre responsáveis pelos nossos actos. Não podemos ignorar as nossas responsabilidades e transferir as culpas para os outros. Isto é verdade em qualquer teoria do dever e da obrigação políticos que seja compatível com os princípios de uma constituição democrática. O cidadão é autónomo mas, no entanto, é tido como responsável pelos seus actos. Se pensamos habitualmente que devemos cumprir a lei, a explicação está em que os nossos princípios políticos nos levam normalmente a tal conclusão.
Certamente que, num estado de quase justiça, existe uma presunção em favor da obediência à lei, salvo quando existirem fortes razões em contrário. A multiplicidade de decisões individuais livres e justificadas formam, no seu conjunto, um regime político ordenado». «Mas, ainda que cada pessoa deva decidir por si própria se as circunstâncias justificam a desobediência civil, não decorre daqui que possamos decidir como bem entendermos. A nossa decisão não deve ser tomada atendendo aos nossos interesses pessoais, às nossas simpatias políticas entendidas de forma restrita. Para agir de uma forma autónoma e responsável, um cidadão tem de atender aos princípios políticos que subjazem e guiam a interpretação da constituição. Tem de tentar avaliar como é que esses princípios deveriam ser aplicados nas condições concretas. Se, reflectidamente, chegar à conclusão de que a desobediência civil é justificada, e se se conduzir de acordo com tal conclusão, terá agido em consciência. Embora possa estar errado, não agiu da forma que mais lhe agradou. A teoria do dever e da obrigação política permite-nos traçar esta distinção». «… numa sociedade democrática, reconhece-se que cada cidadão é responsável pela sua interpretação dos princípios da justiça e pela sua conduta à luz dos mesmos. Não pode haver qualquer interpretação jurídica ou socialmente aprovada a cuja aceitação estejamos sempre moralmente vinculados, nem mesmo quando seja feita por um tribunal supremo ou por uma assembleia legislativa. Na verdade, cada um dos poderes constitucionalmente previstos, o legislativo, o executivo e o judicial, propõe uma interpretação da constituição e dos ideais políticos que a informam. Embora o poder judicial possa ter a última palavra na decisão de qualquer caso concreto, ele não é imune a influências políticas poderosas, as quais podem forçar a uma revisão da sua leitura da constituição. Os tribunais apresentam a sua doutrina através de argumentos racionais; para que a sua concepção da constituição resista, ela tem de persuadir a maior parte dos cidadãos de que é fundamentada. O tribunal de derradeira instância não é qualquer dos órgãos jurisdicionais, nem o executivo nem o legislativo, mas o eleitorado no seu conjunto. É a ele que apelam, em especial, aqueles que recorrem à desobediência civil. O perigo da anarquia não existe desde que haja uma concordância funcional bastante entre as concepções que os cidadãos têm da justiça e desde que as condições para o recurso à desobediência civil sejam respeitadas. Está implícito na forma política da democracia que os homens podem atingir aquele entendimento e respeitar aqueles limites desde que as liberdades políticas básicas sejam mantidas».
Textos
Frederico S.N. Alcântara de Melo. [JOHN RAWLS: UMA NOÇÃO DE JUSTIÇA, Working Paper, Faculdade de Direito, Universidade Nova de Lisboa, 2001 http://www.fd.unl.pt/web/Anexos/Downloads/226.pdf]
Luiz Paulo Rouanet. "Rawls: Filósofo Político do Século 20." Cult, ano 8, número 97, páginas 62-63, novembro de 2005.
Retirado da Wikipédia (adaptado no Farol)

Jean Bodin

Jean Bodin (1530-1596) foi um jurista francês, membro do Parlamento de Paris e professor de Direito em Toulouse. Ele é considerado por muitos o pai da Ciência Política devido a sua teoria sobre soberania.Baseou-se nesta mesma teoria para afirmar a legitimação do poder do homem sobre a mulher (da monarquia sobre a gereontocracia).
Ele escreveu diversos livros, mas a
Inquisição condenou a muitos deles porque o autor demonstrou simpatia pelas teorias calvinistas, e calvinistas, chamados Huguenotes na França eram processados pela Igreja católica assim como outras seitas protestantes ou reformadores cristãos o eram em outros países católicos.
Seus livros dividiram opiniões: alguns escritores franceses os admiravam, enquanto
Francis Hutchinson foi seu detrator, criticando sua metodologia. As obras escritas por Bodin faziam diversas alusões a julgamentos de bruxos e o procedimento que deveria ser seguido, dando-lhe a reputação de um homem sanguinário.

De la République

As idéias de Bodin retratam muito bem o que foi o Estado Absolutista na prática: um Estado onde o poder do monarca não era absoluto - apesar de divino; onde a propriedade privada é inviolável, protegida diante da arbitrariedade do rei - proteção esta defendida pelo direito civil romano (jus), contando com forte apoio por parte da burguesia mercantil.
Jean Bodin foi o primeiro
autor a dar ao tema da soberania um tratamento sistematizado, na sua obra Six Livres de la République (Os seis livros da República). Para ele, soberania é um poder perpétuo e ilimitado, ou melhor, um poder que tem como únicas limitações a lei divina e a lei natural. A soberania é, para ele, absoluta dentro dos limites estabelecidos por essas leis.
A idéia de poder absoluto de Bodin está ligada à sua crença na necessidade de concentrar o poder totalmente nas mãos do governante; o poder soberano só existe quando o povo se despoja do seu poder soberano e o transfere inteiramente ao governante. Para esse autor, o poder conferido ao soberano é o reflexo do poder divino, e, assim, os súditos devem obediência ao seu soberano.
Bodin entende, ainda, que da obediência devida às leis natural e divina deriva uma terceira regra, pela qual o príncipe soberano é limitado pelos contratos que celebra, seja com seus súditos, seja com estrangeiros, e deve respeitar tais acordos.

La Démonomanie des Sorciers

Bodin recomendou tortura, até mesmo em casos de inválidos e crianças, para tentar confirmar a culpa de feitiçaria. Ele afirmou que nem mesmo uma bruxa poderia ser condenada erroneamente se os procedimentos corretos fossem seguidos, suspeita tida como suficiente para atormentar o acusado uma vez que rumores relativos à bruxaria quase sempre eram verdades.

Retirado de Wikipédia

Nasceu em Angers em 1530, filho de artesão e, por parte da mãe, de origens judaicas. Depois de estudar direito na Universidade de Toulouse, onde chega a exercer funções docentes, tornou-se advogado com banca em Paris. Homem de variados interesses intelectuais, jurista que se interessa pela história, pela economia, pela política e pelos próprios temas do sagrado, Bodin assume-se tb. como um enigma, dadas as suas bruscas mudanças de partido. Mas, conforme a clássica asserção do Cardeal Retz, ele há épocas em que se tem de mudar muitas vezes de partido se se quiser permanecer fiel às suas opiniões. Em 1566 publica um Methodus ad facilem historiarum cognitionem. Em 1568 edita uma Réponse au paradoxe de Monsieur Malestroict, obra que tinha como subtítulo sobre a carestia geral e uma maneira de a evitar, na qual trata de matérias de economia política, em particular da moeda e da subida dos preços. Em 1576 edita os célebres Les Six Livres de la République. Em 1580 chega mesmo a escrever uma Démonomanie des Sorciers que pretendia ser um manual para usos dos juízes encarregados do julgamento de casos de bruxaria e feitiçaria. A partir de 1571 passou a servir o Duque de Alençon, mais tarde Duque de Anjou, irmão do futuro rei de França Henrique III. E é com este seu senhor que vive em Inglaterra na corte de Isabel I que chegou a qualificá-lo como brincalhão. Les Six Libres de la République são editados em 1576, numa altura em que o autor está mergulhado na política activa como deputado do Terceiro Estado, funções que exerce em 1576 e 1577. Fazia então parte do partido dos Politiques, dirigido por Michel de L'Hôpital, que pretendia colocar-se numa espécie de terceira via contra as posições extremadas da Sainte Ligue dos católicos e da União Calvinista. Apesar de acusado de ateísmo, escapa ao massacre de Saint-Barthélemy, retirando-se para Laon. É aqui que, em 1588, adere à Sainte Ligue, depois das tropas católicas terem conquistado a cidade e de ter obtido um emprego de procurador do rei.

Retirado de Respublica, JAM

domingo, 24 de dezembro de 2006

Karl Marx

Karl Heinrich Marx (Tréveris, 5 de maio de 1818Londres, 14 de março de 1883) foi um intelectual alemão considerado um dos fundadores da Sociologia. Também podemos encontrar a influência de Marx em várias outras áreas (tais como filosofia, economia, história) já que o conhecimento humano, em sua época, não estava fragmentado em diversas especialidades da forma como se encontra hoje. Teve participação como intelectual e como revolucionário no movimento operário, sendo que ambos (Marx e o movimento operário) influenciaram uns aos outros durante o período em que o autor viveu.
Atualmente é bastante difícil analisar a sociedade humana sem referenciar-se, em maior ou menor grau, à produção de K. Marx, mesmo que a pessoa não seja simpática à
ideologia construída em torno de seu pensamento intelectual, principalmente em relação aos seus conceitos econômicos.


Biografia

Karl Marx nasceu numa família de classe média. Seus pais tinham uma longa ascendência judaica, mas tiveram que se converter ao cristianismo em função das restrições impostas à presença de judeus no serviço público. Em 1835 Marx ingressou na Universidade de Bonn para estudar Direito, mas, já no ano seguinte transferiu-se para a Universidade de Berlim, onde a influência de Hegel ainda era bastante sentida, mesmo após a morte (em 1831) do celebrado professor e reitor daquela universidade. Ali, os interesses de Marx se voltam para a filosofia, tendo participado ativamente do movimento dos Jovens Hegelianos. Doutorou-se em 1841 com uma tese sobre as Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Nesse mesmo ano concebeu a idéia de um sistema que combinasse o materialismo de Ludwig Feuerbach com a dialética de Hegel.
Impedido de seguir uma carreira acadêmica, tornou-se em 1842 redator-chefe da Gazeta renana. Com o fechamento do jornal pelos censores do governo prussiano, em 1843, Marx emigra para a França. Naquele mesmo ano, casou-se com Jenny von Westphalen. Deste casamento, Marx teve cinco filhos: Franziska, Edgar, Eleanor, Laura, e Guido. Franziska, Edgar e Guido morreram na infância, provavelmente pelas péssimas condições financeiras a que a família estava submetida. Marx já havia sido privado da oportunidade de seguir uma carreira acadêmica na Alemanha pelo recrudescimento do absolutismo prussiano, que tornava suas posições como hegeliano de Esquerda inaceitáveis, e, com a Revolução de 1848 e o exílio que se seguiu a ela, foi obrigado a abandonar o jornalismo na Alemanha e tentar ganhar a vida na Inglaterra como um intelectual estrangeiro desconhecido com meios de subsistência precários, sofrendo, assim, a sorte comum destinada pela época às pessoas destituídas de "meios independentes de subsistência" (isto é, viver de rendas), e sua incapacidade de ter uma existência financeiramente desafogada não parece ter sido maior do que a dos seus contemporâneos Balzac e Dostoievsky. Durante a maior parte de sua vida adulta, sustentou-se com artigos que publicava ocasionalmente em jornais alemães e americanos e por diversos auxílios financeiros vindos de seu amigo e colaborador Friedrich Engels. Tentava angariar rendas publicando livros que analisassem fatos da História recente, tais como O dezoito brumário de Luís Bonaparte, mas obteve pouco retorno com estas empreitadas.

Principais obras
Dialética de Marx


Apesar de influenciado por Hegel, Marx diz ter invertido a teoria dialética deste. Ao passo que Hegel, entre outros de sua época, postulava a crença no Absoluto (estado, idéias), Marx veio a inverter essa ordem (chamando a si mesmo de um hegeliano às avessas) e através de Ludwig Feuerbach passa para o movimento conhecido por hegelianos de esquerda. Coloca a produção material de uma época histórica como a base da sociedade e, também, a criadora da subjetividade dessa época. Não é o conhecimento espiritual que muda a produção da existência e, consequentemente, a vida social, mas exatamente o contrário: com a atividade prática, a revolução (equiparação das forças produtivas com relação ao corpo social), o corpo social transforma também a sua subjetividade.

A relação da produção da vida prática e material para com as idéias não é, porém, determinística e reducionista como à primeira impressão pode parecer; existe uma relação dialética entre essas duas entidades. Marx tinha um pensamento prático e político que muitos entenderam como sendo um método a determinar a realidade, chamando-o de materialismo histórico e dialético, que mais tarde veio a ser denominado de marxismo. Além disso, os estruturalistas, que passaram a ler os escritos de Marx segundo uma visão estruturalista segundo a qual com os homens seriam apenas apêndices das estruturas econômicas, e não criadores diretos destas. Como colocado por Lukács já na década de 1920, a metodologia marxista vê na ciência social uma totalidade, onde se a Economia organiza a tessitura básica da vida social - a "determinação em última instância", dizia Engels - a Política e a Cultura, por sua vez, contribuem para estabelecer as formas históricas de gestão econômica, e, portanto, agem decisivamente sobre a organização material da Sociedade.

Críticas

As críticas que são feitas a Karl Marx se confundem e as vezes são as mesmas críticas que se fazem ao marxismo, comunismo e socialismo. Uma questão chave que é disputada entre os defensores e os críticos de Marx, é até que ponto o pensador pode ser responsabilizado pelo aparecimento de regimes ditatoriais, genocidas e autoritários, que alegam inspirar-se em suas idéias.
Existe grande polêmica, por exemplo, se o Estado policial na União Soviética e os gulags seriam conseqüências do pensamento de Marx ou frutos de uma má interpretação feita por parte de seus seguidores.
Em Miséria do historicismo (1935, 1944), Karl Popper discorda de Marx de que a história obedece a leis que se compreendidas podem servir para se antecipar o futuro. Segundo Popper, a história não pode obedecer a leis e a idéia de "lei histórica" é uma contradição em si mesma. Já em A sociedade aberta e seus inimigos (1945), Popper afirma que o historicismo conduz necessariamente a uma sociedade "tribal" e "fechada", com total desprezo pelas liberdades individuais. O problema com esta crítica de Popper é sobre se Marx teria realmente concebido um historicismo: o que ele faz é, seguindo uma tradição inaugurada por Maquiavel e Hobbes, buscar nos interesses e necessidades concretos dos indivíduos na História a causa fundamental das ações humanas, em oposição às idéias políticas e morais abstratas, mas ele não parece supor que esta busca de realização de interesses tenha conseqüências pré-determinadas, interpretação esta que parece mais resultar de uma influência do evolucionismo darwinista na exegese póstuma do pensamento marxiano realizada pelo "papa" da Social-Democracia alemã, Karl Kautsky, no final do século XIX. A interpretação kautskista seria contestada, de várias formas, por Bernstein, Rosa Luxemburgo, Lenin, Trotsky e Gramsci, entre outros.
Popper considera, ainda, Marx como "não-científico", pelo fato de seu pensamento não ser passível de contestação. Para Popper, uma idéia para ser considerada válida sob o ponto de vista científico, deve estar sujeita à contestação (resta saber, é claro, se afirmações sobre fatos históricos, necessariamente únicos, podem ser, nos termos de Popper, falsificáveis).
Eric Voegelin diz que Marx levanta questões que são impossíveis de serem resolvidas pelo "homem socialista". Vogelin também alega que Marx conduz a uma realidade alternativa, a qual não tem necessariamente nenhum vínculo com a realidade objetiva do sujeito. Voeglin diz que quando a realidade entra em conflito com Marx, Marx descarta a realidade.
Raymond Aron, em O ópio dos intelectuais, (1955) critica de forma agressiva os intelectuais seguidores de Marx e condena a teoria da revolução e o determinismo histórico.
O processo de crítica ao pensamento de Marx iniciou-se desde a publicação de suas primeiras obras, e continuam até hoje. As críticas da época em que ele estava vivo receberam respostas por parte dele e Engels, e, posteriormente, pelos seus seguidores e por intelectuais preocupados em conhecer o pensamento de Marx.

(Retirado da Wikipédia)

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Totalitarismo

"Totalitarismo, o que é?

[1º - Para uma operacionalização do conceito]

Qualitativamente diferente da tirania é a experiência contemporânea do totalitarismo, como se manifestou no estalinismo, no nazismo e no maoísmo, apesar de alguns antecedentes históricos, como a ditadura teocrática de Calvino, o modelo inquisitorial da Contra-Reforma, a república dos santos de Cromwell ou o terrorismo jacobino.
Segundo Carl J. Friedrich e Zbigniew Brzezinski, o totalitarismo teria seis grandes características:
- uma ideologia oficial entendida como corpo de doutrina que abrange todos os aspectos vitais da existência humana, à qual todos os que vivem nessa sociedade devem aderir, pelo menos, passivamente;
- um único partido de massas dirigido tipicamente por um homem e que é organizado hierarquicamente e de forma oligárquica, acima ou totalmente ligado à organização burocrática do governo;
- a existência de um sistema de controlo policial terrorista que é dirigido não só contra inimigos declarados, mas também arbitrariamente para certas classes da população, com uma polícia secreta que utiliza a psicologia científica;
- os meios de comunicação de massa estão sob monopólio quase completo;
- a existência de situação idêntica no que diz respeito aos meios armados;
- controlo e direcção central de toda a economia.
Mais recentemente Giovanni Sartori veio utilizar outro modelo para a conceitualização do totalitarismo, fazendo nele imbricar as degenerescências do autoritarismo e da ditadura. Utilizando cada uma das três categorias como modelos abstractos, marcados por determinadas características, vem considerar que na realidade, os diversos regimes degenerados vão pontuando, segundo vários critérios, numa de três tipologias:
- totalitarismo (t);
- autoritarismo (a); e
- ditadura simples (d),
conforme os critérios da ideologia, da penetração do Estado na sociedade civil, da coerção, da independência dos subgrupos dentro do Estado em causa, as políticas face a outros Estados, da arbitrariedade do poder, do centralismo do partido...
a) quanto à ideologia, ela pode ser forte e totalística (t), não totalística (a) e irrelevante ou fraca (d);
b) a penetração do Estado na sociedade civil pode ser extensiva (t), modesta (a) ou nenhuma (d);
c) a coerção pode ser alta (t), média (a) ou média baixa (d);
d) a independência dos subgrupos pode ser nenhuma (t), limitada a grupos políticos (a) ou permitida com excepções (d);
e) as políticas face a outros grupos estaduais pode ser destrutiva (t), exclusivista (a) ou errática (d);
f) a arbitrariedade pode ser ilimitada (t), dentro de limites prévios (a) ou errática (d);
g) o centralismo do partido pode ser essencial (t), útil (a) ou mínimo ou nenhum (d).
Segundo o critério da ideologia, entendida como um sistema de crenças idêntico ao de uma religião, uma interpretação substantiva do mundo ou uma simples forma mentis, a gradação passaria por um crescendo.
Quanto à penetração do Estado (aparelho de poder) na sociedade civil, o totalitarismo seria aquele regime que destrói a separação entre o público e o privado. Já não estaríamos perante o L'État c'est moi, do despotismo esclarecido, mas antes naquilo que Trotski disse de Estaline: La Societé c'est moi. Mussolini, por exemplo, apesar de ter proclamado o tudo no Estado, nada fora do Estado, não passou da retórica, dado que na Itália fascista continuaram a florescer vários nichos de autonomia da sociedade civil... O totalitarismo assumir-se-ia sempre como uma negação de uma concepção pluralista da sociedade. Seria, pelo menos, a destruição da crença no valor do pluralismo.
Já quanto ao critério da coerção ou mobilização, Sartori refere que a capacidade de mobilização tanto pode resultar da densidade organizacional como do fervor ideológico, sublinhando que a concentração do poder (isto é, a não separação dos poderes) não pode ser confundida com a respectiva centralização, da mesma forma como um sistema monista não tem que ser monolítico. A este respeito, se C. J. Friedrich colocava como um dos elemento definidores do totalitarismo, um sistema policial terrorista (terrorist police system), já Sartori considera que o terror é contingente num sistema totalitário, não sendo uma característica necessária, porque quando o controlo totalitário entrou na rotina, o terror tornou-se supérfluo.
Quanto ao critério da arbitrariedade, Sartori define-o como o exacto contrário da rule of law, do Estado de Direito.
Aceitando o essencial desta perspectiva, acrescentaremos que são possíveis três concepções de totalidade política e, consequentemente, três modelos de totalitarismo:
1. No Estado fascista e, em certo sentido, no absolutismo, é o Estado, qua tale, que domina e forma a sociedade, suprimindo a liberdade desta.
2. No Estado soviético, surge o Estado-Partido, primeiro, com Lenine, onde temos um partido totalitário visando a reconstrução total da sociedade, depois, com Estaline, com um Estado totalitário que subordinou totalmente a sociedade, e, finalmente, com Brejnev, onde surge um Estado totalmente estagnado, dominado por um partido totalitário corrupto.
3. Num terceiro modelo, como foi praticado pelo nazismo, o Estado e a Sociedade já se reúnem numa unidade nova, através de uma espécie de terceira força: o povo político formando um todo, através de um movimento que transforma o Estado num simples aparelho administrativo.
[2º - Desenvolvimentos]
Foi com o modelo fascista de Benito Mussolini, que em 1925 se assumiu o lema do nada fora do Estado, acima do Estado, contra o Estado. Tudo no Estado, dentro do Estado, ao mesmo tempo que se tentava substituir à velha tríade da revolução francesa, da liberté, égalité, fraternité, pela fascista trindade de autoridade, ordem, justiça. O próprio Mussolini, no artigo Fascismo, publicado em 1929, e rescrito por Giovanni Gentile, na Enciclopedia Italiana, definia o respectivo Estado como stato totalitario, proclamando: pode pensar‑se que o século actual é o século da autoridade, um século de 'direita', um século fascista; e que se o século XIX foi o século do indivíduo (liberalismo significava individualismo), podemos pensar que o século actual é o século 'colectivo' e, por consequência, o século do Estado. Três anos depois, em La Dottrina del Fascismo, já considerava que para o fascista, tudo está no Estado e nada de humano e espiritual existe, e muito menos tem valor, fora do Estado. Neste sentido, o fascismo é totalitário e o Estado fascista, síntese e unidade de todos os valores, interpreta, desenvolve e potencia toda a vida do povo. O fascismo, com efeito, sublimou o Estado, transformando‑o num fim em si mesmo. Como dizia Sergio Panunzio, um dos seus doutrinadores, tal como a matéria tende para a forma, a sociedade tende para o Estado.
Já o nacional‑socialismo alemão vai desvalorizar o ideia de Estado, considerando-o como simples aparelho (Apparat) ao serviço da comunidade do povo (Volksgemeinschaft). Como salientava Adolf Hitler em Mein Kampf, de 1924, o Estado não passa de simples forma cujo conteúdo é a raça: o Estado é um meio de atingir um fim. Deve manter, em primeiro lugar, os caracteres essenciais da raça. Segundo as palavras de Pierre Birnbaum, Hitler opôs-se à concepção hegeliana do Estado como instrumento da razão universalista ou ainda da teoria weberiana do poder racional‑legal, que se aplicam, tanto uma como a outra, muito particularmente, ao Estado prussiano fortemente burocratizado, fazendo sua uma perspectiva anti‑estatista e desejando confiar a uma elite o cuidado de realizar a união da raça. Não se estranhe, pois, que alguns teóricos nazis cheguem a considerar o mesmo Estado como mero produto do direito romano, criticando particularmente a noção de personalidade do Estado, considerada como resultante de uma concepção jurídica individualista, apenas baseada em relações meramente interpessoais.
Alfred Rosenberg, o célebre autor de Der Mythus des zwanzigsten Jahrhunderts, de 1930, por exemplo, assinalava que o Estado já não é, hoje, para nós um ídolo que se baste a si mesmo e perante o qual todos nos devemos prostrar; o Estado também não é um fim, é apenas meio para a conservação étnica. Um meio como os outros, como deveriam sê‑lo a Igreja, o Direito, a Arte, a Ciência. As formas do Estado mudam e as leis passam, mas o povo permanece. Donde resulta que a Nação é o princípio e o fim perante o qual tudo o resto deve vergar‑se.
Outros autores, como Reinhard Höhn, em Volk und Verfassung, chegam mesmo a propor que o nazismo dispense a própria noção de Estado, dado que para a construção do novo direito público alemão seriam suficientes os conceitos de povo (Volk) e de condutor (Führer).
Não obstante esta doutrina não se ter tornado dominante entre os juristas nazis, o facto é que o movimento fez sempre uma clara distinção entre o Estado-Aparelho(Staat) e o Estado‑Comunidade (Reich), desvalorizando particularmente o primeiro. Como ensina Burdeau, o Estado deixou de ser o titular do poder político e a doutrina levou ao desaparecimento do Estado como construção constitucional.
Do mesmo modo, se alterou o clássico conceito de governo, que deixou de ser um regierung, passando a entender-se führing, emanando directa e organicamente da própria comunidade. Daí o Führer ser entendido, não como órgão do Estado, mas como representante directo da nação, não como mandatário mas como o próprio poder incarnado.
O Estado Aparelho, entendido como um conjunto de meios técnicos, pessoais e materiais ao serviço de um interesse geral que ele já não determina, como assinala Georges Burdeau, passou a estar nas mãos do führer para, como assinala Höhn servir a Volksgemeinschaft, por um lado, para preencher certas funções nacionais (ordem, segurança interior, defesa nacional) e, por outro, como instrumento para a educação do povo no espírito da Volksgemeinschaft. Nestes termos, o Estado já não tem a qualidade de uma pessoa moral à qual o particular deve obediência... A base do novo pensamento jurídico é a ideia de comunidade do povo. O Estado não é senão um instrumento para realizar os fins da mesma.
Os direitos do Estado passaram, pois, a ser considerados como um mito demoliberal e a fonte de todo o poder a estar nessa vaga entidade chamada volk, marcada por uma concepção quase mística, cujo espírito se incarnava na subjectivíssima vontade do führer.
Também Hitler no Mein Kampf considerava que o objectivo do Estado reside na conservação e desenvolvimento de uma comunidade de seres vivos da mesma espécie, física e mentalmente e que os Estados que não correspondem a essa finalidade são fracassos, impondo‑se, portanto, a defesa da alma racial (Rassenseele). Hitler refere que o fim supremo do Estado racista deve ser o de procurar a conservação dos representantes da raça primitiva, criadores da civilização, que fazem a beleza e o valor moral de uma humanidade superior. Nós, enquanto arianos, não podemos representar um Estado senão como organismo vivo que constitui um povo, organismo que não apenas assegura a existência desse povo, como ainda , desenvolvendo as suas faculdades morais e intelectuais, o faz atingir o mais alto grau de liberdade. O Estado não tem outro papel senão o de tornar possível o livre desenvolvimento do povo, graças ao poder orgânico da sua existência. Paradoxalmente tem uma concepção feita à imagem e à contraposição daquilo que ele considera a concepção judaica do Estado: o Estado judeu nunca foi delimitado no espaço; expandindo‑se sem limites no universo, compreende exclusivamente os membros de uma mesma raça. É por isto que este povo formou em todo o lado um Estado no Estado, até porque a religião de Moisés não é senão a doutrina de conservação da raça judaica. Assim, Hitler também considera que o Estado é um organismo racial e não uma organização económica onde o instinto de conservação da espécie é a primeira causa da formação de comunidades humanas, pelo que acredita que nunca nenhum Estado foi fundado pela economia pacífica, mas sempre o foi pelo instinto de conservação da raça, tanto o heroísmo ariano gerando Estados marcados pelo trabalho e pela cultura, como a intriga geradora das colónias parasitas de judeus."
posted by JAM (adaptado no Farol)

Totalitarismo é um regime político baseado na extensão do poder do Estado a todos os níveis e aspectos da sociedade ("Estado Total", "Estado Máximo"). A aspiração destes regimes é de um domínio absoluto daqueles sob seu julgo, e, nas suas últimas conseqüências, ao domínio universal, sem a restrição imposta pela noção de Estado-nação. A máquina governamental, na visão de alguns autores, aparece como mero instrumento para fins desse domínio total e universal aspirados por movimentos totalitários.

Pode ser resultado da incorporação do Estado por um Partido (único e centralizador) ou da extensão natural das instituições estatais. Geralmente, é um fenómeno que resulta de extremismos ideológicos e uma paralela desintegração da sociedade civil organizada. A distinção entre totalitarismo de direita (Nazismo) e de esquerda (Estalinismo), é insuficiente para compreender suas particularidades, funcionamento e aspirações enquanto regime político da modernidade.

Sob o título de totalitarismos, as diferenças ideológicas entre regimes como o nacional-socialista de Adolf Hitler e o fascista de Benito Mussolini, o comunista de Joseph Stalin e o de Mao Tse-tung, ficam enevoadas. Apesar de pertencentes a campos ideológicos antagônicos, extrema-direita de um lado e extrema-esquerda do outro, a operosidade dos seus regimes frente a suas populações parecem convergir no que diz respeito aos métodos e táticas empregados na própria manutenção, apesar das "confissões" do aparelho governamental de Mao sobre as contradições não antagônicas entre o estado e o povo chinês. Sem apelar para discursos ideológicos, todos esses regimes visavam a eliminação daqueles elementos que consideravam contrários a seus objetivos, sejam eles comunistas ou ultra-direitistas.

A argumentação de que tenham sido os governos de ultra-direita expressões do capital monopolistas não têm base mais sólida que a mesma argumentação para governos como o New Deal norte-americano ou a República de Weimar na Alemanha anterior a Hitler. Neste último caso, na verdade, tardou para que o grande capital o apoiasse, e foi só após sua tomada do poder que este apoio se efetivou e tomou lugar nas explorações tanto por parte do grande como do pequeno capital da mão-de-obra escrava dos campos de concetração postos em funcionamento pelo regime nacional-socialista. Ademais, o regime de Hitler era, desde seu início, anti-liberal tendo derrubado antigas estruturas institucionais imperiais bem como antigas elites consolidadas. Já o caso italiano foi mais proveitoso ao capital na medida em que extinguia sindicatos e obstáculos à administração patronal do trabalho. Ali sim o movimento foi no interesse de velhas classes dominantes em reação às agitações esquerdistas revolucionárias que se avolumavam.

Apesar do objetivo de coletivizar a propriedade privada na União Soviética de Stálin, este ascendeu ao poder não por vontade popular, mas galgando cargos burocráticos até assumir o aparelho do Partido através de lutas internas pelo poder fazendo parte de segmentos conspirativos no interior do partido bolchevique. Tendo estabelecido um governo marcado pelo terror, justificado por conspirações fictícias, instalado em todos os âmbitos da vida social, como nos regimes totalitários de direita, Stálin também levou a cabo assassinatos e expurgos em massa daqueles considerados opositores à causa do partido, ou mais especificamente ao que ele enquanto líder soviético considerava as causas do movimento dos trabalhadores, haja vista a limpeza que efetivou nos altos escalões da máquina governamental e do partido bolchevique como um todo.


Os regimes totalitários são violentamente opressores e estão inseridos no contexto da 'sociedade de massas', não existindo enquanto tal antes do século XX. São paradigmas na história os regimes totalitários de Adolf Hitler e Joseph Stalin, respectivamente na Alemanha e na União Soviética.

O politólogo especialista no Islão Bassam Tibi propôs nos seus livros mais recentes a tese de que o Fundamentalismo islâmico (em alemão "Islamismus") é também um totalitarismo.

O Totalitarismo foi objecto de sátira na obra de George Orwell.


Génese e contexto histórico

Foi ainda no decorrer da Primeira Guerra Mundial que começou a nascer o Totalitarismo, fenômeno político que marcou o século XX. Com a necessidade de direcionar a produção industrial para as demandas geradas pela guerra, os governos das frágeis democracias liberais européias tiveram de se fortalecer, acumulando poderes e funções de Estado, em detrimento do poder parlamentar, para agilizar as decisões importantes em tempos de guerra. Quando voltasse a paz, dizia-se, esses poderes seriam retornados à distribuição democrática usual. Mas não foi isso que aconteceu.

O Estado com executivo forte e legislativo debilitado que se constituiu durante a Primeira Guerra acabou sendo a semente do modelo de Estado autoritário que surgiria na década seguinte. Das várias monarquias parlamentares européias em 1914 (Reino Unido, Itália, Espanha, Portugal, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Suécia, Noruega, Sérvia, Bulgária, Romênia, Grécia, Áustria-Hungria e outras), só a britânica terminou o século sem ter passado por uma ditadura de inspiração fascista.

A propaganda totalitária

Elemento de destaque constituiu a propaganda entre os movimentos totalitários do século XX. Aspirando ao domínio total da população em regimes pautados por teorias conspiratórias e uma realidade fictícia criada em meio a um desprezo pela realidade dos fatos, a propaganda totalitária foi essencial para, num primeiro momento, a conquista das massas e arregimentar em torno de si uma enorme quantidade de simpatizantes. Já empossados da máquina governamental, o terror, ainda restrito na ascenção dos movimentos ao poder, assume sua forma mais acabada, e, com isso, constitui-se no melhor instrumento de propaganda destes regimes: dão realidade às afirmações fictícias do regime. Como exemplo, Stálin, ao divulgar que acabara com o desemprego na URSS, uma inverdade de fato, extinguiu os programas de benefícios para desempregados; ao afirmarem, os nazistas, que poloneses não tinham intelecto, começaram o extermínio de intelectuais poloneses.

Desta forma, o uso da violência é tido como parte da propaganda. E a primeira só vai substituir a segunda na medida em que a dominação vá se efetuando completamente. A propaganda é destinada aos elementos externos ao movimento, àqueles que ainda não se domina completamente, já o terror é perpetrado entre aqueles já dominados e que não mais oferecem resistência ao regime, alcançando sua perfeição nos campos de concentração onde a propaganda é totalmente substituida pela violência.

Foram também apontadas semelhanças entre a propaganda totalitária e a propaganda comercial de massa que se desenvolvia nos Estado Unidos naquele início de século utilizando argumentos cientificistas para suas afirmações justificando a supremacia de suas próprias razões. Tal crença nos argumento da ciência inciados com as descobertas da física do século XVI e XVII, são importantes ainda que desfiguradas nos regimes totalitários. Inicialmente vista como solução dos problemas da humanidade, em termos utilitaristas, o cientificismo do totalitarismo é esvaziado deste conteúdo adquirindo feições proféticas e desprovidas de um bom senso utilitário que apelava ao indivídualismo da sociedade capitalista. A sociedade massificada em que dominavam os regimes totalitários lidavam com um indivíduo atomizado que, para o espanto do mundo não-totalitário, perdia até mesmo seu instinto de auto-conservação.

Referências bibliográficas

HOBSBAWM, Eric. "A queda do liberalismo", In: Era dos extremos: O breve século XX, Companhia das Letras, 1995, p. 113-143.
ARENDT, Hannah. "O Totalitarismo", In: Origens do totalitarismo, Companhia das Letras, 1989, p. 339-531.

(Retirado da Wikipédia)