terça-feira, 2 de outubro de 2007

QOT. Princípio do

Quod omnes tangit ab omnibus debet approbari (o que a todos diz respeito por todos deve ser aprovado). Princípio básico do consensualismo medieval que consagra a origem popular do poder. Teorizado por Álvaro Pais, foi o fundamento das Cortes de 1385. Nestas, João das Regras proclama: porque é direito que às coisas que a todos pertencem e de que todos tenham carregosejam a elo chamados. ESPE, II, pp. 261 ss.

Retirado de Respublica, JAM

Quinto Império

O messianismo português, diverso dos anteriores milenarismo, como os de Fire. Um modelo de império que não se assume como o fim da história, mas como um fim que vem depois do fim, para utilizarmos as palavras de Dominique Roux. O messianismo bandarrista serve de semente para o mito do Quinto Império e alimenta o chamado sebastianismo. Com efeito, entre 1530 e 1540, surgem umas Trovas de Gonçalo Anes, de alcunha o Bandarra, sapateiro de Trancoso, que falam Desse bom Rei Encoberto que Tirará toda a Erronia/ Fará Paz em todo o Mundo. As Trovas, que serão julgadas como judaizantes pela Inquisição, servirão, contudo, de elemento fundamental para a estratégia de resistência dos que se opunham à administração filipina e tratavam de lançar achas para a fogueira do messianismo sebastianista, procurando transformar aquele que fora O Desejado num Encoberto. É, a partir de então, que se estrutura o mito do Quinto Império, que se apresenta, assim, como uma grandiosa síntese que recapitula os elementos mais universais das concepções políticas precedentes: da reconquista, o carácter integrador de ressaibos implicitamente jusnaturalistas; do augustinismo político, a ideia da necessidade da submissão do orbe a um poder cristão; da Cruzada, o patrocínio do Estado, com seu braço armado, à propagação da fé; da ideologia expansionista portuguesa, tal como tomou corpo sob D. João III, a instauração da lei natural, do estado ético e da justiça, como prólogo à propagação pacífica da fé. O Quinto Império aparece, pois, como uma religião política, como a integração simbólica de um povo, segundo as palavras de Jürgen Moltmann. É o que acontece a todas as nações que se auto-interpretam como nações metafísicas, em contraste com as chamadas nações empírico-etnográficas. Todas as nações que se assumem de um ponto de vista transcendental, representando diversos espaços histórico geográficos de uma só e mesma nação. Daí a sua atracção e repulsão recíprocas, como salienta o recente filósofo russo Nikolai Chulguine, referindo-se ... à Rússia.

A ascensão e queda de Portugal nos séculos XV e XVI foi fulminante. Do reino antigo rapidamente se passou ao novo reino, sonhando-se com o Império, ao mesmo tempo que o rei, nos fins de 1576, começos de 1577, deixava de ser Alteza e se assumia como Majestade, abandonando a coroa aberta do reino e alcandorando-se à coroa fechada e circular do soberanismo monárquico. Pouco tempo depois, com a derrota de Alcácer-Quibir em 1578, passava-se abruptamente, da suprema esperança, aos amargos da derrota. Os mitos da augmentação aparecem, assim, incidivelmente ligados aos mitos da decadência. Como observava Garcia de Resende: Era Portugal o cume / Agora por mau costume / Se perdeu em poucos anos. No cume, na procura do Império, a degenerescência dos costumes, a corrupção do corpo político e a falta de autenticidade do poder, que geram a necessidade de se plantar novo reyno, novos homens, novas Leys, novos costumes, como expressava D. Álvaro de Castro, em carta ao Cardeal D. Henrique. Um novo reino que, de certa maneira, procurava retomar os antigos hábitos. Como se expressava o povo em Corte, havia uma enorme diferença entre o estado a que somos vindos e quão diferentes nas vidas e nos costumes daqueles Portugueses antigos, usando de tamanhos excessos nas jóias, nos comeres, nos adereços de nossas casas e nos exercícios de nossas vidas. Mas é deste choque que surge o típico da consciência nacional portuguesa, fundada na procura da regeneração e da refundação, onde, muito messianicamente, a memória do sofrimento constitui o principal alento para o desejo de libertação.

Esses patetas sebastianistas que sempre persistiram apenas são os que querem ter a lucidez de se saberem ingénuos. Aqueles que querem conservar Portugal, essa virtude da insolência que tem, sobretudo, as asas da imaginação, para descer à terra. Sebastianistas continuam a ser aqueles que consideram que Portugal não é apenas aquele Portugal que permaneceu no Portugal dos séculos XV e XVI. Que há outros novos portugais além do Portugal Velho. Novos portugais que os genes e os sonhos dos sucessivos portugueses semeiam pelo mundo. Que há outros portuguais sem o nome de Portugal e que constituem aquilo que Gilberto Freyre qualificou como o mundo que o português criou. Neste sentido, Pessoa disse que falta cumprir-se Portugal, que a nossa missão é o impossível do conquistemos a distância, do mar ou outra, mas que seja nossa.

Têm, pois, razão Alexandre Herculano, António Sardinha, António Sérgio ou Agostinho da Silva quando apontam certas facetas do renascimento como a primeira das causas da nossa decadência. Liberdadeiros, tradicionalistas, racionalistas ou esotéricos, uns simplesmente liberalistas, outros monárquicos, outros socialistas, outros republicanos, todos reconhecem que a decadência foi deixarmos de cumprir a liberdade portuguesa. Mas o Renascimento é um desses deuses com duas faces. Se uma aponta a decadência, a outra escreve-se com a esperança camoniana. 1580 constitui, de facto, um marco assinalado pelas lendárias palavras de Camões: morro, mas morro com a pátria. Não que a pátria tenha perecido, dado que o sofrimento, provocado pela consciência da ocupação, gerou o desejo de libertação. Ela volver-se-à em algo que se perde entre as brumas da memória, algo que nos é segredado pela voz dos egrégios avós, tornando-se saudade, ou messianismo, ou tentando transformar-se num imortal que tem de ressurgir, obrigando os vindouros ao esforço de levantar hoje de novo o esplendor de Portugal, conforme as palavras daquele que será o chamado hino nacional. Todo o patriotismo português será saudade e memória a partir de então, exigindo um esforço interior de refundação ou regeneração. Mas se a pátria não morre, Portugal continua ocupado por um ser estrangeiro na sua índole, isto é, pela abstracção de um poder estatal majestático. E se em 1640 defenestramos os agentes do filipismo, deixámos ficar em casa os hábitos do burocratismo e, muito especialmente, aquela ocupação da moral política pelo inquisitorialismo de um Estado Ético. Foi de facto o majestático que nos aprisionou. Se em 1579 e em 1580 o poder fosse apenas coisa que cabia dentro da república, coisa da mesma natureza dos outros poderes e não um ponto no espaço, uma abstracção entendida como condição prévia da estadualidade, ele não seria jamais herdado, comprado ou conquistado.

Se a tentação soberanista já não nos algemasse e amargurasse, não haveria aquele testamento do Cardeal-Rei, aquela transformação em pasto para polémicas jurídicas do que apenas devia ser política. Se o poder supremo não fosse mero ponto no espaço estaria menos dependente da balança de poderes. Assim, já D. Jerónimo Osório não teria de escolher entre dois males, aquilo que considerou o mal menor, o de Castela, contra um D. António considerado como mera longa manus de França.

Entre as obras fundamentais para a compreensão do sebastianismo e do Quinto Império:

. D.JOAO DE CASTRO, Discurso da Vida do Sempre Benvindo e Aparecido Rei Dom Sebastião, Nosso Senhor o Encoberto Desde o seu Nascimento até ao Presente, Paris, 1602;

. Paráfrase e Concordância de Algumas Profecias de Bandarra, Sapateiro de Trancoso, Paris, 1603 - a primeira edição impressa das trovas; - Novas Flores sobre a Paráfrase do Bandarra com algumas Retrataçöes do Autor;

. JOSE AGOSTINHO DE MACEDO, Os Sebastianistas, Lisboa, 1810;

. SAMPAIO BRUNO; O Encoberto, Porto, Empresa Literária e Tipográfica, 1904;

. A. DE SOUSA SILVA COSTA LOBO, As Origens do Sebastianismo, Lisboa, Livraria Moderna, 1909;

. J. LUCIO DE AZEVEDO, A Evolução do Sebastianismo, Lisboa, 1910 (2ª ed. de 1947);

. ANTONIO SERGIO, Interpretação não Romântica do Sebastianismo, in Aguia, Jul-Ag., 1917 ( in Ensaios , Tomo I, Lisboa, Sá da Costa, 1971);

. AUGUSTO FERREIRA GOMES, Quinto Império, Lisboa, 1934;

. JOEL SERRÃO, Do Sebastianismo ao Socialismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1969;

. A. MACHADO PIRES, D. Sebastião e o Encoberto, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1971 (antologia de textos);

. JOAQUIM MOURA-RELVAS, El-Rei Dom Sebastião. Ensaio Biológico, Coimbra, 1972;

. MARTIM DE ALBUQUERQUE, O Valor Politológico do Sebastianismo, Separata dos Arquivos do centro Cultural Português, Paris, Fundação Calouste Gulbemnkian, 1974;

. FRANCISCO SALES LOUREIRO, D. Sebastião. Antes e Depois de Alcácer Quibir, Lisboa, Vega, 1978;

. SECRETARIA DE ESTADO DA COMUNICAÇAO SOCIAL, O Sebastianismo. Breve Panorama de um Mito Português, Lisboa, Ediçöes Terra Livre, 1978;

. MARIO SARAIVA, Nosografia de D. Sebastião. Revisão de um Processo Clínico, Lisboa, Delraux, 1980;

. ANTONIO QUADROS, Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. Ensaio de Filosofia do Mito, Lisboa, Guimarães, 2 vols, 1982-1983 e Portugal, Razão e Mistério. Ensaio de Filosofia da História, do Mito e do Símbolo, Vol I, Para uma Arqueologia da Tradição Portuguesa, Lisboa, Guimarães, 1986 e Vol II, Projecto Aureo ou Império do Espírito Santo, id., 1987.

Retirado de Respublica, JAM

Quinta Coluna

Foi o general nacionalista Francisco Mola, por ocasião da Guerra Civil de Espanha que inventou a expressão, quando as forças nacionalistas cercavam Madrid com quatro colunas militares e o general em causa fez referência à quinta coluna, a dos colaboracionistas que se encontravam no interior da cidade dominada pelos rojos. Diz-se de todos os agentes inimigos actuam na rectaguarda.

Retirado de Respublica, JAM

Questão Social

Nome dado ao conjunto de problemas sociais do século XIX produzidos pela Revolução Industrial e a emergência do capitalismo selvagem, que teve respostas tanto do socialismo como da doutrina social da Igreja.

Retirado de Respublica, JAM

Questão (A) Nacional e a Social-Democracia, 1913

Lenine encarregou Estaline, em 1912, de organizar um panfleto sobre a problemática da nação, dado que este georgiano, já em 1904, quando ainda era um fervorosos nacionalista georgiano, tinha elaborado um trabalho sobre a matéria, onde considerava que "a questão nacional nas diferentes épocas serve interesses diversos, toma formas diversas, em função da classe que os põe,e do momento em que ela os põe". Desse trabalho surgiu um texto publicado em Janeiro de 1913 na revista Prosvechtenie, intitulado A questão nacional e a social democracia que, depois de ligeiramente modificado, vai ser, nesse mesmo ano, editado em S. Petersburgo, sob o título O marxismo e a questão nacional e colonial. Aí considera que "a nação e uma comunidade estável, historicamente constituída, de língua, de território, de vida económica e de formação psiquica, que se traduz numa comunidade de cultura". Também na mesma data refere que "a nação é uma categoria histórica e é uma categoria histórica de uma época determinada, da época do capitalismo ascendente". Não deixa, no entanto, de considerar que "a questão nacional é uma parte da revolução proletária, uma parte da questão da ditadura do proletariado". Assim, define a nação como uma comunidade humana, estável, historicamente constituída, nascida na base de uma comunidade de língua, de território, de vida económica e da formação psíquica que se traduz numa comunidade de cultura. E basta que falte um dos elementos para que a nação deixe de ser nação.

O artigo visava atacar os membros do Bund, a união operária dos judeus da Lituânia, da Polónia e da Rússia, fundada em 1897, federalistas, que pretendiam assumir-se como os representantes do proletariado judeu, em nome da autonomia cultural nacional, considerada reaccionária por Lenine. Surge também uma crítica à perspectiva de Otto Bauer.

·A Questão Nacional e a Social-Democracia, artigo publicado em 1913 na revista Prosvechtchenie, escrito em Viena nos finais de 1912, princípios de 1913, e depois publicado em brochura, em São Petersburgo, no ano de 1914, sob o título A Questão Nacional e o Marxismo. Cfr. A trad. port., Marxismo e Questão Nacional, Lisboa, Assírio e Alvim, 1976.

Retirado de Respublica, JAM

Questão Coimbrã (1865)

Polémica políti-literária que opôs António Feliciano de Castilho e Manuel Pinheiro Chagas a Antero de Quental e Teófilo Braga. Castilho desencadeou o processo num prefácio ao livro Poema da Mocidade de Chagas. Respondeu Quental com o folheto Bom Senso e Bom Gosto.

Retirado de Respublica, JAM

Qu'est ce que le Tiers État?, 1789

Uma brochura, de pouco mais de uma centena de páginas, editada anonimamente em Janeiro de 1789, Qu'est ce qu'est le Tiers État?, da autoria de Emanuel-Joseph Sieyès (1748-1836), e redigida em Novembro e Dezembro de 1788, depois do mesmo autor ter emitido, também anonimamente, um Essai sur les Privilèges, transforma a palavra nação na síntese programática do desejo de mudança. Sieyès, roubando algumas ideias de Rousseau, e assumindo-se contra os privilégios que o Ancien Régime atribuía aos estados do clero e da nobreza, procura, nesse documento, defender a predominância do terceiro estado com o qual identifica a nação: le Tiers, à lui seul constitue la Nation, et tout ce qui n'est pas de Tiers, ne peut se regarder comme faisant partie de la Nation. Qu'est ce que le Tiers?. O tom de manifesto de tal trabalho detecta-se logo nos slogans iniciais da introdução, onde Sieyès levanta e responde a três questões: 1º O que é o Terceiro Estado? Tudo. 2º O que tem sido até agora na ordem política? Nada. 3º O que pede? Ser alguma coisa. A partir de então, a nação é entendida, não como uma emoção ou como algo de metafísico, mas sim como uma categoria política prática. Isto é, à cláusula geral e indeterminada da vontade geral de Rousseau, os revolucionários franceses dão o conteúdo concreto da vontade nacional, através da técnica do centralismo democratista, assumindo-se uma perspectiva construtivista da nação. Como se lê na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer qualquer autoridade a não ser a que dela directamente derive.. A soberania nacional una e indivisível exige uma ligação directa entre o cidadão e o Estado, implica um câmara única e uma lei única, bem como uma administração centralizada, sem corpos intermediários. Esta nacionalatria tinha, aliás, a ver com um concreto problema de luta pelo poder. As forças aristocráticas contra-revolucionárias desenvolveram uma teoria onde se considerava que a nobreza não tinha a mesma origem do povo.

Retirado de Respublica, JAM

Quesnay, François 1694-1774

Médico-cirurgião de Luís XV, rei de França, depois de o ser de Madame Pompadour. Amigo de Diderot, Helvétius, Turgot, Mirabeau e Adam Smith. Publica o seu Tableau aos 64 anos. Criador da chamada fisiocracia, cujos cultores também são chamados filósofos economistas. Inventor da expressão Ne pas trop gouverner, ne point réglementer. Influenciado pelo sensualismo inglês e Malebranche, aceita as ilusões de Hobbes quanto à universalidade das ciências da natureza. A fisiocracia, expressão consagrada por Dupont de Nemours, cujas doutrians são depois desenvolvidas por Gournay, intendente do comércio a partir de 1746, estabelece um programa de liberdade do comércio, atenuando os direitos alfandegários e aliviando os entraves resultantes das regulamentações corporativas, salientando que a agricultura é a base primitiva de todas as riquezas. Contudo, Quesnay assume a defesa do despotismo dito legal, considerando funesto o sistema de contraforças num governo. Tal como contraria a ideia de Montesquieu sobre a divisão dos poderes, também não se mostra adepto do garantismo de Locke e distancia-se das perspectivas mercantilistas de Colbert. Colabora na Enciclopédia, nomeadamente com os artigos Fermiers, de 1756, e Grains, de 1757. Na linha de Descartes e de Hobbes, introduz na análise económica a matemática e o mecanicismo.

Ordem natural e essencial

Salienta que há uma ordem natural e essencial que tem de ser baseada na propriedade. Assume, neste sentido, a defesa da chamada liberdade geral, principalmente da liberdade económica, mas sem defesa da liberdade política. De acordo com as respectivas teses, cada um tem um direito natural de fazer uso com reconhecimento de todas as faculdades que lhe foram outorgadas pela natureza, na condição de não causar prejuízos nem a si mesmo nem aos outros.

Retirado de Respublica, JAM

Qu'est ce q'une Nation?, 1882

Ernest Renan, numa célebre e celebrada conferência realizada na Sorbonne,em 11 de Março de 1882, e que constitui ponto de peregrinação obrigatória de todos quantos analisam teoricamente a questão da nação, "a existência de uma nação é,perdoem‑me esta metáfora,um plebiscito de todos os dias, como que a existência de um indivíduo,é uma afirmação perpétua de vida". Mais tarde,vem salientar que "o que constitui uma nação é ter feito grandes coisas no passado e querer voltar a fazê‑las no futuro". Renan queria , com efeito, opôr a nação,entendida como produto da história, à raça, mero produto da zoologia:"a história humana difere essencialmente da zoologia.A raça não existe aí da mesma forma como entre os roedores ou os felinos, e não se tem o direito de sair pelo mundo apalpando o crânio das pessoas e depois agarrá‑las pelo pescoço dizendo:'tu és do nosso sangue,tu pertence‑nos'.Fora dos caracteres antropológicos,existe a razão,a justiça,a verdade,o belo que são os mesmos para todos". Para ele "os países mais nobres,a Inglaterra,a Itália , a França são aqueles onde o sangue é mais misturado.Será a Alemanha , a esse respeito, uma excepção?Será ela um país germânico puro?Que ilusão!".

Retirado de Respublica, JAM

Qu'est ce que la Démocratie?”, 1994

Alain Touraine considera que a democracia pode degradar-se num supermercado político. É preciso definir a democracia não como o triunfo do universal sobre os particularismos, mas como o conjunto das garantias institucionais que permitem combinar a unidade da razão instrumental com a diversidade das memórias, a troca com a liberdade.

Retirado de Respublica, JAM

Quental, Antero de (1842-1891)

Antero Tarquínio de Quental. Activista da Questão Coimbrã em 1865. Participa nas Conferências do Casino de 1871. Em Portugal perante a Revolução da Hespanha. Considerações sobre o Futuro da Política Portuguesa no Ponto de Vista da Democracia Ibérica, um folheto publicado em 1868, depois de Isabel II ter sido derrubada por Prim, dizia que a nacionalidade não passava de uma forma passageira e artificial, de um facto do mundo político e como ele transitório e alterável, que ela não seria o símbolo único, a forma mais perfeita do sentimento nobre, o amor da Pátria. Propunha então que nas nossas actuais circunstâncias o único acto possível e lógico de verdadeiro patriotismo seria renegar a nacionalidade. Para ele as forças mais moças e inteligentes, os elementos mais generosos da nossa sociedade estão comprimidas, as asfixiadas por esta forma estreita da velha nacionalidade. Entre uma coisa e outra é necessário escolher. Ora eu sustento que, entre as realidades eternas da natureza humana, de um lado e, do outro, a criação artificiosa e antiquada da política, não há que hesitar. Se não é possível sermos justos, fortes, nobres, inteligentes senão deixando cair no abismo da história essa coisa a que se chamou nação portuguesa, caia a nação, mas sejamos aquilo que nos criou a natureza, sejamos inteligentes, nobres, fortes, justos, sejamos homens, muito embora deixemos de ser portugueses. Era então que ele advogava um iberismo espiritual, defensor de uma Espanha, não como uma nação, mas como um aglomerado de elementos justapostos, mas não fundidos, integrados numa república democrática e federalista. Neste sentido, as nacionalidades eram consideradas como coisa velha e caduca, como um obstáculo desgraçado, resto das hostilidades fatais de séculos bárbaros. Em 1869 ainda advogava que Portugal está na classe dos povos extintos, como a Grécia: tem ainda habitadores que mantêm uma nacionalidade in nomine; mas esta utopia, formada sobre os in-fólios dos cronicões, tem de se desmoronar por si mesma. É triste, mas é verdade. No discurso de 27 de Maio de 1871, integrado nas Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos, falava com nostalgia do tempo medieval, dado que neste o instinto político de descentralização e federalismo patenteia-se na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em que se divide a Península, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais, contra a unidade uniforme, esmagadora e artificial, acrescentando que esse espírito não é só independente: é, quanto a época o comportava,singularmente democrático.Terminava, propondo: oponhamos à monarquia centralizada, uniforme e impotente, a federação republicana de todos os grupos autonómicos, de todas as vontades soberanas, alargando e renovando a vida municipal, dando-lhe um carácter radicalmente democrático, porque só ela é a base e o instrumento natural de todas as reformas práticas, populares, niveladoras.Refira-se que entre Março e Maio de 1870 tinha ocorrido a Comuna de Paris e é nesse ambiente que, em Maio, era editado em Portugal o periódico A República, onde, para além de Antero, também pontificava Oliveira Martins. Dois anos depois, quando surgia a Fraternidade Operária, aconteciam em Portugal as primeiras greves. Nesse mesmo ano, em 10 de Março, o proselitismo de Antero e de Oliveira Martins, juntamente com o de José Fontana, emitiam novo jornal militante, O Pensamento Social, ao mesmo tempo que, no Porto, surgia o jornal católico A Palavra. Contudo, esta primeira vaga socialista não vão frutificar num país onde se vive uma certa euforia capitalista. Basta recordar que no ano de 1873, há uma aparente opulência, manifestada pela fundação de cerca de dois bancos por mês. No ano seguinte, o estado financeiro continua a ser admirável, graças à grande circulação de numerário. Só em 1875 é que podia fundar-se o Partido Operário Socialista, estruturando-se um movimento de pensamento que vai levar Costa Goodolphim a editar a obra A Associação. Contudo, a ideologia que vai ser predominante em toda essa geração será o positivismo de Augusto Comte cujas linhas vulgarizadoras, bem expressas na revista O Positivismo de Teófilo Braga (1843-1924) e Júlio de Matos, publicada entre 1878 e 1882, vão ser fundamentais na conformação do nosso movimento republicano. É também nesse ano de 1878, quando é eleito papa Leão XIII, que Oliveira Martins começa a inflectir o seu pensamento em As Eleições, depois completado pelo Portugal Contemporâneo de 1881, dois anos antes da morte de Karl Marx. Como o próprio Antero vai considerar em 1887, em carta dirigida a Wilhelm Storck, era um tempo em que vivia num paganismo intelectual requintado, numa religiosidade falsa e só aparente que não chegaria à essência das coisas. Era um tempo em que lia Proudhon e Michelet, bem como Hegel, a tal singular aliança ... do naturalismo hegeliano e do humanitarismo radical francês. E ao mesmo tempo ... conspirava a favor da União Ibérica, que seria feita por meio da República Federal, então representada em Espanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Cortes Constituintes. O Iberismo era uma grande ilusão da qual porém só desisti (como de muitas outras desse tempo) à força de golpes brutais e repetidos da experiência. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas coisas da sociedade!. Em 1888, em carta dirigida a Fernando Leal, considera: parece que estamos num período análogo ao da dissolução do mundo romano, ao qual se deve seguir uma nova Idade Média. Quem sabe o que sairá dela, quando lhe soar a hora da sua Renascença? E talvez que só então valham e tenham utilidade de aplicação as doutrinas dos filósofos e publicistas de hoje. Foi assim que muitas ideias de Aristóteles e dos Estóicos só se vieram a realizar e a adquirir valor social no século XV e XVII!!.

Retirado de Respublica, JAM

Queda (A) de um Anjo, 1866

Romance de Camilo Castelo Branco, satirizando a classe política.

Para alguns, a caricatura de D. António Aires Gouveia, bispo de Betsaida (1828-1916). Na ficção, o deputado Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, nascido em 1815, é eleito deputado com 44 anos, por Miranda do Douro, quando nas Câmaras havia três deputados legitimistas e os "liberais" estavam na oposição. Ele que era santo homem lá das serras, o anjo do fragmento paradisíaco do Portugal velho caiu (p.265). Caiu o anjo, e ficou simplesmente o homem, homem como quase todos os outros, e com mais algumas vantagens que o comum dos homens (p.265). Os miguelistas chamaram-lhe liberal e acérrimo. Respondeu: estou português do século XIX (p. 241) no rumo em que o farol da civilização alumiava com mais clara luz I(id.) Disse que escolhia o seu humilde posto nas fileiras dos governamentais, porque era figadal inimigo da desordem, e convencido estava de que a ordem só podia mantê-la o poder executivo, e não só mantê-la, senão defendê-la para consolidar as posições, obtidas contra os cobiçosos delas. Reflexionou sisudamente, e fez escola. Seguiram-se-lhe discípulos convictíssimos, que ainda agora pugnam por todos os governos, e por amor da ordem que está no poder executivo (p. 243) Depois de se enlevar nas delícias de França (p. 262) de se falagelar na ciência moderna e na leitura de livros modernos (p.262) e fechado o triénio da legislatura, foi agraciado com o título de barão de Agra de Freimas, e carta de conselho. Sondou o ânimo de alguns influentes eleitorais de Miranda para reeleger-se pelo seu círculo. Disseram-lhe que o mestre-escola lhe hostilizava a candidatura, emparceirado com o oboticário. Arranjou o barão dois hábitos de Cristo, que fez entregar com os respectivos diplomas, aos dois influentes. Na volta do correio foi-lhe asseguarada a eleição. que, de mais a mais, o Governo apoiava (p.263).

. Adriano Moreira, «A Queda de um Anjo e a Classe Política», in Roteiros, n.º 11, Jul./Dez., Lisboa, 1990.

Retirado de Respublica, JAM