Europa sem limites
As realidades permanecentes da Europa são insusceptíveis de definição através da emissão de uma qualquer oração que dê uma noção completa de tal objecto. Primeiro, porque é materialmente imposível de+finire Europa, estabelecer-lhe os limites, dar-lhe fins ou confins, fixar-lhe fronteiras, em suma, fechá-la. Depois, porque se torna inglório fixar-lhe uma essência, um centro a partir do qual possa traçar-se a linha separadora da não Europa. Diremos, como salienta Theodore Zeldin, que a originalidade da Europa é não haver fronteiras. Acrescentaremos até que, da essência da Europa, faz parte não poder conceber-se qualquer espécie de essência da Europa. Julgamos pois que todas as definições axiomáticas da Europa não passam de exercícios interessantes, mas infrutíferos, quando não perigosos. Até porque nestes domínios, omnis definitio periculosa esta, sobretudo quando, sob o disfarce da lógica, se constróem pretensos primeiros princípios donde depois se ousa descer ex genere et differentia, pela dedução, estabelecendo-se um sistema hierarquizado de conceitos, um pretenso saber de ciência certa, seja a do magister dixit, seja o do decreto do poder absoluto que eventualmente o normalize. Digamos, como François Perroux, que a Europa é, definitivamente, uma Europe sans rivages, um objecto não identificado e não identificável, mas que, apesar disso, não deixa de ser bem real, epecialmente quando a olhamos de fora, com um pedacinho de senso comum, mesmo que envolto num não sei quê de nostalgia metafísica. Paul Valéry, em Regards sur le Monde Actuel, Paris, 1931, diz ter descoberto uma espécie de ideia virtual da Europa quando enfrentou os problemas da guerra do Japão contra a Rússia e dos Estados Unidos contra Cuba. Então terá percebido confusamente a existência de qualquer coisa que podia ser atingida e inquietada por tais acontecimentos. Encontrei-me sensibilizado em conjecturas que afectavam uma espécie de ideia virtual de Europa que ignorava trazer dentro de mim até então. Nunca tinha sonhado que existisse verdadeiramente uma Europa. Não procuremos, pois, aceder à Europa pelo essencialismo, pela definição de um conceito entendido como essência, donde, depois, poderá descer-se, dedutivamente, do axioma para o concreto, através de um rendilhado de definições. Fazer isto, é aceitar o eventual primeiro princípio da autoria de um qualquer mestre pensador e reconhecer autoridade aos proclamados discípulos do mesmo, só porque, eventualmente, têm o controlo do dicionário ideológico do supremo hierarca. A Europa só pode ser inventada, só a podemos desvelar pela inventio, pelo descobrimento, por uma ars inveniendi que a reconheça como problema e que a procure captar como sistema aberto. Só assim a poderemos compreender, vislumbrá-la como um todo, vendo cada parcela da mesma como dotada de uma realidade de sentido, mesmo que seja através daquela intuição imediata, com que um observador, dotado de senso comum, a pode identificar. Só depois, a poderemos introspectivar e reflectir, representando-a no nosso próprio espírito. E quem ousar pensar a Europa, depressa chegará à conclusão que ela só pode ser entendida como contradição, senão mesmo como paradoxo, dada que a respectiva complexidade, apesar de tudo, tem a harmonia dos conjuntos marcados pela coordenação de elementos dispersos e não semelhantes, como concórdia dos discordes. Digamos, muito categoricamente, que a Europa, em termos de homogeneidade, não é uma realidade geográfica, não é uma realidade étnica, não é uma realidade histórica, não é uma realidade política, não é uma realidade geográfica, não é uma realidade jurídica, não é uma realidade psicológica, nem sequer uma realidade cultural. Que, encarando-a, através de qualquer uma destas facetas nunca a encontraremos unidimensional, como um bloco monolítico.