sábado, 13 de outubro de 2007

Lenine, Vladimir Ilitch Ulianov (1870-1924)

Segue-se, em 1895, a fundação por Lenine da União de Luta para a Libertação da Classe Operária. E em 1898, no Congresso de Minsk, com apenas nove delegados institui-se o Partido Operário Social Democrata da Rússia que, em 1903, no II Congresso, realizado em Londres, se vai dividir entre o mencheviques ou membros da minoria (menchistvo) e os bolcheviques, ou membros da maioria (bolchinstvo) enquanto os restos de populismo se agrupavam no Partido Socialista Revolucionário, fundado em 1901. É deste último partido que vão destacar-se em 1905 os Maximalistas e, no Outono de 1917, o Partido Socialista Revolucionário de Esquerda. Este vai acabar por colaborar com os bolcheviques na primeira fase da revolução soviética, obrigando o remanescente dos socialistas-revolucionários de direita a uma aliança como os mencheviques.

O mesmo Lenine, que, nos começos da Revolução de Fevereiro, ainda estava exilado em Zurique, com Zinoviev e Radek, vai regressar à Rússia numa carruagem chumbada, graças ao apoio dos alemães, naturalmente interessados no enfraquecimento um dos inimigos.

Em 4/17 de Abril já está em Petrogrado, adoptando, então, as chamadas Teses de Abril: recusa de colaboração com o governo provisório (não se deve conceder o mínimo apoio ao Governo Provisório); defesa do estabelecimento imediato da Paz, contra o chamado defensismo revolucionário do governo de Lvov; reclamação de todo o poder para os sovietes.

No mesmo sentido, de não poder haver dois poderes no Estado, movimentam-se os marinheiros de Kronstadt, desde 13 de Maio, quando decidem reconhecer como único governo legítimo o Soviete de Petrogrado Os bolcheviques, sob o comando de Lenine, que, logo em Abril, proclamara que a guerra dos aldrões imperialistas é o começo da guerra socialista em toda a Europa, apesar de não verem as suas posições aceites pelo Congresso dos Sovietes, iam lançando as sementes de uma revolução dentro da revolução.

Kerenski consegue tomar as rédeas do poder mandando regressar tropas à capital, a fim de reporem a ordem (4 de Julho/ 17 de Julho). Os principais dirigentes bolcheviques entram na clandestinidade e há uma ordem de prisão contra Lenine (5 de Julho/ 18 de Julho.) que se refugia em Razliv, a 20 milhas de Petrogrado, onde conclui O Estado e a Revolução. Só a 21 de Agosto/ 3 de Setembro é que passa à Finlândia. A actividade propagandística de Lenine é, a partir de então febril, com uma série de artigos, cartas e outras intervenções. Em 30 de Agosto/12 de Setembro e 1/14 de Setembro, o artigo Bolcheviques devem Tomar o Poder, onde diz que tomando o poder simultaneamente em Moscovo e São Petersburgo... venceremos inconstestavelmente e sem dúvida alguma; em 29 de Setembro/12 de Outubro, a carta ao Comité central do partido, intitulada O Marxismo e a Insurreição, onde parafraseando Marx, diz que a insurreição é uma arte... é necessário conquistar um primeiro trunfo e continuar logo avançando de um para outro, sem interromper a ofensiva contra o inimigo, aproveitando a sua confusão... A insurreição deve apoiar-se no ímpeto revolucionário do povo e deve surgir no momento de viragem da história da revolução ascendente; em fins de Setembro, o artigo Os Bolcheviques conservarão o Poder?, onde considera que uma revolução verdadeiramente profunda... é um processo incrivelmente complexo e doloroso; é a agonia de um velho regime social e o nascimento de um novo; dezenas de milhões de homens nascem de uma nova vida. A revolução é a luta de classes, a guerra civil, mais dura, mais furiosa, mais desesperada. Não há na história nenhuma grande revolução que tenha podido fazer-se sem guerra civil e que quem tiver medo do lobo não vá à floresta, dado que não se pode fazer uma omeleta sem partir ovos.

Esta teoria insurreccional, vai, pari passu, passar do papel à realidade, da mesma maneira, como, anos depois, as teses do Mein Kampf serão judiciosamente aplicadas por Adolf Hitler no respectivo processo de conquista do poder.

Ambos terão meditado neste célebre pensamento de Napoleão: em todas as batalhas chega sempre um momento em que os soldados mais corajosos, depois de terem feito os maiores esforços, sentem uma disposição para a fuga. Este terror provém de uma falta de confiança na sua coragem, basta uma ligeira ocasião, um pretexto para lhes devolver essa confiança: a grande arte está em fazê-los nascer.

Entretanto, sem a presença de Lenine reunia-se o VI Congresso do partido bolchevique, onde 270 delegados representam cerca de 240 000 membros.

Lenine que estava no exílio finlandês, decide largar Helsínquia e instalar-se em Vyborg, perto da fronteira, em 17/30 de Setembro, onde incita à revolta. Diz para não se iludirem com os números das eleições, dado saber que a maioria do povo está do nosso lado, pois os bolcheviques, propondo imediatamente uma paz democrática, entregando as terras aos camponeses e restabelecendo as instituições e liberdades democráticas confiscadas e deformadas por Kerenski, formarão um governo que ninguém conseguirá derrubar. Em 7/20 de Outubro já Lenine está em Petrogrado e, no dia 10/23, o Comité Central do partido decide promover um golpe armado, com oposição pública de Kamenev e Zinoviev. Institui-se também um Comité Militar Revolucionário (Revvoensovet) no dia 16/29 de Outubro. Refira-se que, para Lenine, o conceito de partido exigia uma organização que, segundo Jules Monnerot, conjuga os meios da sociedade secreta, do partido político democrático e do exército, onde o Politburo é um comité central dentro do Comité Central, é um directório insurrecional secreto. Com efeito, como assinala Kolakowski, o génio de Lenine não foi o da previsão, mas o de concentrar num preciso momento todas as energias sociais que podiam utilizar-se para tomar o poder, e subordinar todos os seus esforços e os do seu partido para este fim. Lenine apercebera-se, no fragor da mudança, que os tempos seriam de sucessivas procuras de novas ordens mundiais em nome das injustiças das ordens que as potências vencedoras iam instaurando. O movimento dos Estados e das Nações não se compadecia com os quadros arquitectónicos das regras, dos esquadros, dos rios e das elevações com que se iam marcando as fronteiras. Tal como corpos vivos, os Estados que assumissem o movimento dos génios invisíveis poderiam ultrapassar a rigidez geométrica dos tratadistas do século anterior. Enquanto o sovietismo jogava no futuro, as democracias burguesas emaranhavam-se em teias balcanizantes, à procura de eficazes polícias do universo. Em 1914 Lenine, embora defendesse o internacionalismo proletário contra o nacionalismo burguês, já reconhecia que em todo o nacionalismo burguês de uma nação oprimida existe um conteúdo democrático geral dirigido contra a opressão; e é este conteúdo que nós apoiamos sem restrições. O mesmo Lenine tinha encarregado Estaline em 1912 de organizar um panfleto sobre a questão nacional que, no ano seguinte, vai ser editado primeiro, na revista Prosvéchtchénié, sob o título A Questão Nacional e a Social-Democracia, depois, em forma monográfica, publicada em São Petersburgo, sob a designação O Marxismo e a Questão Nacional e Colonial. Aí, o georgiano considera que a questão nacional é uma parte da revolução proletária, uma parte da questão da ditadura do proletariado, definindo a nação como uma comunidade historicamente constituída de homens que possuem um território comum, uma língua comum, uma comunidade de vida económica e uma comunidade de estrutura psíquica, que se manifesta numa comunidade de cultura. Naquela simples mudança de título do estudo de Estaline está a chave da flexibilidade marxista-leninista que vai ter na obra de Lenine, escrita em 1916 e publicada na Suíça nos inícios do ano seguinte, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, um dos últimos condimentos da poção mágica. Nesta obra, eis que o velho marxismo da social-democracia, que apenas admitia o dualismo social da luta de classes e tentava abstrair-se da questão nacional e colonial, nos quadros de um vago internacionalismo cosmopolitista, vai transformar-se, sem negar as origens. E é a partir deste tópico que se constitui o marxismo-leninismo que assenta, sobretudo, no dualismo geográfico dos povos imperialistas e dos povos oprimidos. Com efeito, a partir da teoria leninista do imperialismo, o movimento político não se reduz apenas a classes que se oprimem, sendo, sobretudo, marcado por zonas territoriais que avançam e recuam conforme o espaço da libertação da revolução mundial socialista-proletária. Como explicita o próprio Lenine: supor que uma revolução social é pensável sem uma revolta das pequenas nacionalidades das colónias e da Europa, sem explosões revolucionárias da pequena burguesia com todos os seus preconceitos, sem o movimento das massas proletárias e semiproletárias inconscientes contra a opressão da nobreza, das igrejas, monarquias e nações estrangeiras supor isso é abjurar da revolução social. O velho fabiano inglês J.A. Hobson que, em 1902, inspirado na guerra dos boers, escrevera a lamechice do O Imperialismo, onde, numa análise económica de cariz marxista, considerava que a expansão territorial dos colonialistas do ocidente era motivada pela ânsia do capital financeiro garantir mercados para os seus investimentos, não seria capaz de imaginar os efeitos surpreendentes da sua criatura, ainda desenvolvida, dentro do mesmos moldes, por R. Hilferding, em O Capital Financeiro, de 1910. Pelo contrário, Lenine vem considerar que o imperialismo, longe de significar um modo de produção diferente do capitalismo, constituiria uma espécie de super-estrutura do próprio capitalismo, dado incluir, além da política, do Estado e do exército do capitalismo, a própria ideologia nacionalista e colonialista da ala mais activa da sociedade capitalista. Uma superestrutura que causaria perturbações a nível da própria infraestrutura e de outras superestruturas: por exemplo, o imperialismo teria gerado na Rússia o desenvolvimento da pequena parte industrializada da economia, provocando transformações rápidas e anárquicas, em contraste com um maioritário sector agrícola arcaico; outra perturbação seria a de se criar uma burguesia minoritária e desfalecida, incapaz da revolução burguesa, deixando essa tarefa para o proletariado que, ao instituir o Estado socialista, estabeleceria uma superestrutura com avanço sobre a quase totalidade das infra-estruturas, que continuariam regidas pelo feudalismo. A partir deste núcleo central, Lenine vem falar numa lei de desenvolvimento desigual do capitalismo, rejeitando a tese, então dominante, entre os marxistas, segundo a qual a revolução surgiria simultaneamente em todos os países capitalistas avançados. Nestes termos, considera que haveria um processo revolucionário por fases sucessivas e que a primeira ruptura na frente imperialista aconteceria num Estado autocrático e atrasado. Repelindo a hipótese de, neste caso, os trabalhadores conquistarem o Estado para o entregarem à burguesia, que o poria a funcionar, Lenine defende, então, uma aliança operário-camponesa, contrariamente às posições do marxismo social-democrata que, mantendo uma espécie de concepção ferroviária da história, ainda perspectivam uma prévia revolução burguesa antes da revolução socialista. Lenine desenvolve o esquema da revolução em causa como início da revolução mundial, abrangendo os dois outros conjuntos económico-sociais do mundo: primeiro, os países semicoloniais, como a China [...] e o conjunto das colónias; depois, os países capitalistas da Europa ocidental e dos Estados Unidos. Mas Lenine sabia que, com o hibridismo gerado, tanto podia mobilizar um nacionalista para o internacionalismo, como desarmar nacionalismos pela mesmíssima mistura explosiva. Porque neste domínio haveria, sobretudo, que entender o movimento libertacionista, instrumentalizando a revolta em nome de uma ideia abstracta, mas desde que a mesma fosse susceptível de ser lida pelos mais contraditórios sonhadores dos amanhãs que cantam. Como ele próprio explicitou: as pessoas que não tenham examinado bem a questão acharão "contraditório" que os sociais-democratas de nações opressoras insistam na "liberdade de secessão" e os sociais-democratas das nações oprimidas na "liberdade de união". Mas um pouco de reflexão mostra que não há nem pode haver qualquer outra via para a internacionalização e a fusão das nações, qualquer outra via da situação presente para aquele objectivo. Isto é, Lenine transformou a velha teoria do imperialismo numa táctica magistral: importava apoiar qualquer movimento tendente a destruir o sistema adversário em qualquer lugar da terra, por qualquer razão mobilizadora do movimento oposicionista e em nome dos interesses de qualquer classe social. Pelo que, as consequências podiam ser várias: a libertação de países coloniais, os movimentos de camponeses ou os levantamentos nacionais burgueses, mas desde que se fizessem contra os chamados imperialistas. Foi esta mestria que permitiu aos soviéticos dotarem-se, para o universo do império russo, de uma política de nacionalidades marcada pela ambivalência, pela flexibilidade e pela habilidade. Foi com este ponto programático que Lenine conseguiu derrotar os russos brancos durante a guerra civil. Com efeito, Denikine, quando dominava territorialmente, tratou, muito rigidamente de defender uma Rússia grande e indivisa, um colete de forças que nem sequer lhe permitiu uma conveniente aliança com o nacionalismo ucraniano, numa frente anticomunista. Contra isto, a partir de Moscovo, os soviéticos iam lançando a confusão na retaguarda dos brancos, quando prometiam e praticavam a autodeterminação das nacionalidades, ao mesmo tempo, que constituíam um Exército Vermelho que mobilizava antigos oficiais czaristas, os quais, muito esotericamente, iam praticando a ideia russa. Aliás, o almirante francês Raoul Castex, ao analisar o efeito da mistura, no Exército Vermelho, de duas palavras de ordem, defesa da pátria soviética e defesa as conquistas da Revolução, considera a existência de estreita correspondência entre um tema nacional russo que apela para o sentimento patriótico e para o apego ao solo natal e um tema messiânico que se filia na ideia de missão mundial que o soldado vermelho tem de cumprir. Denikine, que podia jogar num programa federalista ou confederacionista, preferiu ser fiel ao unitarismo czarista e, naturalmente, ficou algemado pelos fantasmas da política de russificação dos alógenos do século XIX. Lenine, pelo contrário, pôde escolher o realismo de ter um pássaro na mão em vez de muitos a voar e logo tratou de aconselhar as retaguardas antibrancas a serem primeiramente independentistas e comunistas, dizendo até a alguns movimentos que seria prematura uma rápida declaração de aproximação à central estadual da sovietização. Por isso, aceitou em Brest-Litovsk uma formidável redução territorial, não se incomodando com o sentimentalismo da reacção nacionalista dos socialistas-revolucionários, porque sabia que, dando alguns passos atrás, poderia, depois, recuperar. De tal maneira, que logo em finais de 1922, juntando os muitos pedaços de independências já podia reconstituir o Grande Império e preparar o caminho para um Império ainda maior. Se Estaline, depois da Segunda Guerra Mundial, quase vai conseguir cumprir o plano de unificação dos eslavos na Europa e de santa aliança imperial-comunista com os chineses, eis que Lenine esteve à beira de conseguir a unificação sovietista do eslavismo e do germanismo, assim tivesse triunfado a revolução spartaquista-bolchevique na Alemanha ou caso tivesse sido possível vencer Pilsudsky na Batalha do Vístula, dois anos depois, transformando a Polónia numa República Socialista Soviética e instigando o bolchevismo a canalizar a revolta alemã contra Versalhes, para uns comunistas libertacionistas e pan-germanistas que bem poderiam ter assumido a função que vai fazer surgir o nacional-socialismo. Um Rapallo ou o acordo Molotov-Ribentrop entre duas potências comunistas poderiam ser bem mais eficazes que os partos violentos de uma guerra mundial. E se juntarmos a isto um processo anticolonialista com chineses sovietizados, aí teríamos uma solução mundialista que talvez se não enredasse nais teias nomenklaturistas dos Kruchtchev, Brejnev e Gorbatchev, esses funcionarecos grão-russos ainda untados do óleo czarista, sem aquela dimensão mundial capaz de entender que a revolta contra a injustiça, geradora da necessidade do libertacionismo, sempre constituiu a mais formidável potência da história humana. Assim, Estaline, em artigo publicado em Novermbro de 1918, comemorando o primeiro aniversário da revolução, A Revolução de Outubro e a Questão Nacional, considera que o grande significado da Revolução de Outubro consiste principalmente em: 1ter alargado a amplitude da questão nacional, convertendo-a, de questão particular de combate à opressão nacional na Europa, em questão geral da emancipação dos povos oprimidos, colónias e semicolónias, frente ao imperialismo; 2 ter aberto amplas possibilidades à emancipação destas e o caminho eficaz que conduz a isso, por consequência, ter facilitado enormemente a causa da emancipação dos povos oprimidos, do Ocidente e do Oriente, e tê-los lançado na via comum da luta vitoriosa contra o imperialismo; 3ter, portanto, estabelecido uma ponte entre o Ocidente socialista e o Oriente escravizado, criando uma nova frente de revoluções contra o imperialismo mundial, frente que, através da revolução russa, se estende dos proletários do Ocidente aos povos oprimidos do Oriente. Mais tarde, em artigo de Maio de 1921, voltava a recapitular a política específica do sovietismo sobre a matéria, considerando quatro traços distintivos: primeiro, a associação íntima entre as questões nacional e colonial, ligando a emancipação dos povos da Europa à emancipação dos povos asiáticos e africanos; segundo, o ter-se substituído a vaga palavra de ordem da auto-determinação, que bem podia ser interpretada como mera auto-determinação cultural, pelo preciso reconhecimento dos direitos das nações à secessão e à constituição de Estados independentes; terceiro, a associação da opressão nacional com o capitalismo, defendendo-se a emancipação simultânea; quarto, aceitação do princípio da equiparação real e não apenas jurídica das nações (auxiliando e encorajando as nações atrasadas a elevarem-se ao nível cultural e económico das nações mais avançadas). Depois, em 1924, numa conferência produzida na Universidade de Sverdlov, publicada com o título de Princípios do Leninismo, vem também reconhecer que o leninismo apoiou o conceito de autodeterminação nacional interpretando-o como direito dos povos oprimidos, dos países dependentes e das colónias, à completa separação e como direito das nações a viverem como Estados independentes. Saliente-se, contudo, que Estaline, enquanto Comissário do Povo para os Assuntos das Nacionalidades, introduziu no princípio leninista um pequeno senão: o direito à autodeterminação de todas as nações era tomado em consideração conforme a sua estrutura de classes e o estádio do respectivo desenvolvimento. Já em Dezembro de 1917, perante as posições tomadas pelo governo não bolchevique da Ucrânia, que apoiara a revolta do chefe cossaco Kaledine e conduzira negociações directas com uma missão militar francesa, Estaline afirmara que tal atitude ucraniana equivalia a transformar a auto-determinação e os princípios elementares da democracia numa farsa. Depois, no decorrer do Terceiro Congresso dos Sovietes, em 1918, Estaline vai propor a necessidade de interpretar o princípio da autodeterminação como um direito, não da burguesia, mas das massas trabalhadoras da nação dada. O princípio da autodeterminação tem que ser instrumento da luta pelo socialismo e tem que se subordinar aos princípios do socialismo.

Em Dezembro de 1918, o mesmo Estaline, repetia, de forma ainda mais precisa: a palavra de ordem "todo o poder à burguesia nacional" está a ser substituída pela palavra de ordem "todo o poder às massas trabalhadoras das nacionalidades oprimidas". Contudo, no congresso do partido, de Março de 1919, vai caber a Lenine cortar cerce este deslizar da respectiva organização política para as posições de Pyatakov e de Bukharine, substituindo a equívoca palavra de ordem autodeterminação pela forte expressão direito à secessão estatal. Acrescentava mesmo: o partido propõe, como uma das formas de transição para a unidade completa, uma união de Estados organizados segundo o modelo soviético. Foi, com efeito, esta teoria de adaptação às circunstâncias que levou o Governo soviético de Moscovo a reconhecer como independentes antigas parcelas do Império dos czares, independentemente de se apresentarem com a forma soviética ou burguesa.A perestroïka teórica de Lenine talvez tivesse como subjacente o realismo de um homem de Estado bom conhecedor das realidades internacionais. Com efeito, Lenine talvez estivesse consciente que a secessão de algumas unidades políticas face aos grão-russos, numa época de hierarquia das potências, em vez de levar a uma efectiva independência, apenas significava um fugir da dependência de Moscovo para uma dependência dos governos ocidentais. O estadista que fora obrigado a aceitar o Tratado de Brest-Litovsk de Março de 1918 e que, no Verão seguinte, vai sofrer os efeitos de uma intervenção militar britânica, francesa, japonesa e americana, estava consciente que, nos finais desse ano, a República Soviética Federal Socialista Russa havia regressado ao minimalismo do Principado de Moscovo, anterior a Ivan IV. Também não podia deixar de reconhecer que a separação da Ucrânia significava o abandono de um quinto da população da Rússia czarista e de uma das zonas mais férteis e mais industrializadas do antigo Império. Mas tendo de submeter-se para sobreviver, adopta uma teoria e uma estratégia que lhe vai permitir lutar para continuar a viver, isto é, para não só recuperar o anterior poder internacional de Moscovo, como também para o engrandecer. Mais do que dar espontâneos passos atrás, para, depois, poder dar muitos mais em frente, Lenine talvez estivesse consciente da inevitabilidade dos erros dos adversários imediatos, tanto dos russos brancos como das potências ocidentais. Isto é, mesmo com Lenine, o sovietismo, depois de servir de receita para a superação do velho problema imperial russo, já continha a semente de todos os ingredientes que serviriam para esboço de solução do pós-Segunda Guerra Mundial quanto ao chamado terceiro-mundismo. Enquanto isto, nos finais dos anos vinte, princípios dos anos trinta, as velhas e novas potências coloniais europeias, entretinham-se a fabricar cópias do imperialismo britânico com muitos Actos Coloniais para impérios sem jóias da Coroa e para metrópoles sem tradições de free trade, enquanto outros tentavam espaços vitais nos quintais da Europa, armando-se furiosamente. Como se as conquistas, as Anschluss e as campanhas de ocupação da soberania fossem mais eficazes que algumas ideias ágeis, certa manha diplomática e uma boa dose de científica propaganda. Com efeito, os jogos de guerra, até então, ainda eram muito feitos à imagem e semelhança dos dispositivos de campanha cheios de bandeirinhas, à maneira napoleónica ou prussiana, esquecendo outras formas de penetração desde violação das massas pela propaganda à ocupação dos povos pelo free trade. Hitler poderá ter descoberto as ondas da rádio, outros irão descobrir as ondas televisivas propagadas por satélite, enquanto antigos derrotados, utilizadores de Wehrmacht e kamikase , acabariam por deslumbrar-se com as eficazes delícias do doux commerce, do rádio de pilhas, das televisões portáteis, das garrafas de coca-cola, das pastilhas elásticas, dos preservativos ou dos sapatos de ténis. Também o VII Congresso do partido, realizado em Petrogrado entre 6 e 8 de Março, vai ser marcado pela questão da paz, onde Lenine tem de enfrentar a oposição dos então chamados comunistas de esquerda, dirigidos por Bukharine e Radek que, por ironia do destino, irão ser executados por Estaline por desviacionismo direitista e que, na altura, publicavam o jornal O Comunista. Contudo, à margem da paz, o partido dos bolcheviques, até então designado por Partido Operário Social-Democrata da Rússia (Bolchevique), passa a designar-se, conforme anterior proposta de Lenine, Partido Comunista da Rússia (Bolchevique). O elemento fundamental do leninismo está na redescoberta da teoria do imperialismo que veio transformar o dualismo social da luta de classes num dualismo geográfico.Como diz Besançon.a partir de Lenine não são apenas as classes que se opõem ,mas zonas "que avançam e recuam ao longo de uma fronteira em movimento.Além disso,o imperialismo permitia uma posição de recuo cómoda em caso de desmentido ,pelos factos ,da luta de classes.Se nesta ou naquela região o proletariado não preenche o seu papel de 'contrário' da burguesia,é porque está corrompido pelo imperialismo,penetrado pela ideologia do imperialismo.Deste modo,a região inteira é condenada"

O comunismo soviético,ao apresentar uma intenção de Estado Universal, foi também acompanhado por uma espécie de religião secular,como assinala Jules Monnerot, dado que "o poder temporal e público é acompanhado de um poder menos visível que,operando para além das fronteiras do império, enfraquece e mina as estruturas sociais das comunidades vizinhas".Assim, "como o Islão conquistador, ignora a distinção do político e do religioso e, se aspira simultaneamente ao duplo papel de Estado universal e de doutrina universal, não é,desta vez, no interior de uma civilização de um 'mundo' coexistindo com outras civilizações, com outros 'mundos', mas à escala da Terra".

Adriano Moreira assinala também a Lenine as características do decisionismo político, da ideia firme da manutenção do Império Russo, da ditadura do proletariado, da viabilidade da revolução em povos subdesenvolvidos e da especial técnica de conquista do poder.Por seu lado, com Estaline, ter‑se‑ia acentuado o domínio russo sobre a U.R.S.S., pelo recurso à continuidade do mito de Moscovo como a Terceira Roma, e surgido, como novidades, a doutrina do cerco, a ditadura do Partido sobre o Estado e a ditadura do Secretário Geral no Partido. A este respeito, Lenine observa que "o que se extingue depois desta revolução é o Estado proletário ou, por outras palavras, um semi‑Estado". Com efeito, para Lenine "sem revolução violenta, é impossível substituir o Estado burguês pelo Estado proletário"E o Estado burguês "não pode ceder o lugar ao Estado proletário (à ditadura do proletariado) pela via da extinção, mas só, em regra geral, por meio de uma revolução violenta" Para ele "o proletariado só precisa de um Estado em via de extinção, quer dizer, constituído de tal maneira que comece imediatamente a extinguir‑se e não possa deixar de extinguir‑se"É que "os trabalhadores só têm necessidade do Estado para reprimir a resistência dos exploradores" Considera mesmo que "o Estado poderá extinguir‑se completamente quando a sociedade tiver realizado este princípio: de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades" até porque "em regime comunista subsistem durante um certo tempo não só o direito burguês, mas também o Estado burguês ‑sem burguesia!"

·O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução, (1917) (cfr. trad. port. de M. Paula Duarte, Lisboa, Editorial Estampa, 1978; cfr. tb. Obras Escolhidas, Lisboa-Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1978, tomo II, pp. 218 segs.).

Retirado de Respublica, JAM

Foto picada do M.I.A.