Evolucionismo e Estado.
A procura do elemento societário
Outro dos tradicionais elementos do Estado é, como vimos, a população. Não o elemento material, natural e bruto, mas a maneira de ser de um determinado conjunto de pessoas, as relações que fazem, dessa soma de elementos, um grupo autónomo, tendo sobretudo em vista os fins que o marcam, que o transformam, por razões espirituais, num conjunto coerente, diferenciado face a outros conjuntos e capaz de prestar consentimento a um determinado poder, fabricando legitimidade.
Da societas à civitas
Lewis Henry Morgan, autor de Ancient Society, de 1877,
O modelo evolucionista progressista
Todo o evolucionismo e todo o progressismo consideram, aliás, que as estruturas se realizam passando do simples ao composto e deste para o conjunto, onde já há coordenação num todo dos respectivos elementos integrantes. Neste processo de evolucionismo coordenador, a primeira estrutura seria o clã que se foi multiplicando e cindindo em vários grupos que, entretanto, começaram a hostilizar‑se. Numa segunda fase, perante esta fragmentação, e havendo necessidade de estabelecimento de uma hierarquia no interior do sistema social, tal conseguiu‑se pelo recurso tanto às castas como às raças vencedoras. E é destas entidades superiores, destas elites que vai emergir o Estado, entendido como a estrutura social integrante de forças antagonistas num conjunto ordenado, como, por exemplo, salienta Lester Frank Ward.
O modelo evolucionista organicista
Esta teoria da transformação dos organismos está também subjacente às teorias evolucionistas organicistas que consideram que o Estado surgiu do desenvolvimento da família. Trata‑se de uma posição que se é nítida em Fustel de Coulanges e Henry Sumner Maine, também não deixa de aparecer em Rousseau para quem a família é o primeiro modelo das sociedades políticas: o chefe é a imagem do pai, o povo é a imagem dos filhos. A mesma posição é adoptada por certos autores católicos, como Pietro Pavan para quem várias famílias formaram a tribo ou aldeia que, por sua vez, se associaram e formaram a cidade, dando várias cidades origem a uma entidade mais vasta:o Estado. Para o efeito invoca‑se o livro do Génesis (5, 31), onde se refere que as famílias se juntaram umas às outras e formaram um grupo orientado pelo respectivo chefe. Trata‑se de uma visão que também se encontra em Aristóteles ‑ para quem a polis seria uma associação de várias aldeias ‑ e que foi retomada por Cícero que salientava ser o conjugio a primeira das societates, a que se segue o domus que é principium urbis et quasi seminarium reipublicae. Mais recentemente Lecomte Du Nouy fala a este propósito na lei do aumento do tamanho que prevalece em Paleontologia, aproveitando para referir o possível desaparecimento do Estado num futuro longínquo.Para ele da família isolada, exposta a todos os perigos, ao clã, depois à aldeia; da aldeia à província, depois ao país e dum país aos Estados que entre si se confinam, a progressão é inelutável. E a protecção que a família derivava da associação ao clã, à aldeia modificou‑se quando, nos Estados totalitários, nos Estados polvos, a personalidade do indivíduo é inteiramente sacrificada à Pessoa política e económica que não é senão uma célula anónima. Iria por esse facto assistir‑se ao crepúsculo das nações, à morte das entidades impessoais, das colmeias governadas por leis desumanas. O esforço da civilização concentrar‑se‑á sobre o aperfeiçoamento da personalidade e da dignidade individual e a Evolução poderá, não é proibido pelo menos esperá‑lo, continuar a sua marcha no sentido do Espírito (La Dignité Humaine, Paris, 1949).
O paradigma da história romana
Na mesma linha se situa a clássica visão da história de Roma, com a passagem da família às gentes e depois à curia, à tribo e à civitas. Um evolucionismo que constitui um tópico do pensamento político clássico.Aristóteles coloca os seguintes degraus nessas corporações: domus, vicus, civitas, provincia, regnum, imperium.S. Tomás de Aquino e Baldo referem a sucessão vicus, civitas e provintia ou regnum.Dante fala em plura ordinata ad unum e considera a seguinte evolução: homo singularis, communitas domestica, vicus, civitas, regnum.Antonius de Rosellis, sistematizando a matéria, refere cinco corpora mystica universitatum, equivalentes às próprias divisões eclesiásticas: a communitas unius vici, castri ou oppidi, com um pároco, na parte religiosa, e um magister, na parte profana; a civitas, com um bispo e um defensor da cidade; a província, com o arcebispo e o praeses provinciae; o regnum com um primaz e um reino e o universus com um papa e um imperador.
O organicismo
Esta visão evolucionista orgânica é também assumida tanto pelos paternalismos monárquicos como por certos corporativismos, para quem a família era constitucionalmente considerada como célula fundamental da sociedade e um dos elementos estruturais da nação. Neste sentido também é paradigmática a teoria patriarcal de Robert Filmer, em Patriarcha, or the Natural Rights of Kings, de 1684, que suscitou a reacção individualista de Locke em An Essay concerning certain false principles. Este conjunto de teorias teve sempre a tendência de considerar o Estado como um organismo superior, como algo de semelhante a uma associação masculina criada pelo instinto de sociabilidade, diferente do impulso sexual. Bonald referia, por exemplo, que a sociedade foi primeiro família e depois Estado. E mesmo Rousseau, como vimos, não deixava de considerar que a mais antiga de todas as sociedades e a única natural é a da família.
O chefe como substituto do pai
Julius Evola, a este respeito, salienta que o Estado é uma aplicação ampliada do mesmo princípio que constitui a família patrícia, onde o paterfamilias é rei sacerdotal; onde há uma paternidade material e uma autoridade espiritual. É que a família antiga é mais uma associação religiosa que uma associação da natureza (Revolta contra o Mundo Moderno, trad. port., pp.71-72). E não tarda que Freud considere que o príncipe é uma espécie de substituto do pai que converte os homens em crianças sem vontade própria. Outros, mais simplesmente, referem a existência de uma comunidade tribal de descendência que, depois, passa a uma comunidade quando tem de afirmar‑se perante outra colectividade, assumindo uma posição guerreira, ofensiva ou defensiva. Salientam, contudo, que o enraizamento associativo pode provir de outras causas de união, seja a existência de uma comunidade linguística ou cultural, seja a de uma simples comunidade de destino, desde a mera way of life a uma religião comum. Isto é, cada associação populacional, sejam um povo único, muitos povos unidos, ou uma nação, tem várias e contraditórias causas, tanto a nível da sua história da formação da respectiva unidade, como no tocante ao próprio futuro da mesma. Não há, com efeito, regra única para a obtenção desse efeito unitário, nem é possível determinar qual o elemento preponderante no processo de unificação de tal constelação genética. Cada povo, cada nação, cada Estado tem a sua própria causa e tem que continuar a conquistar o seu próprio futuro, dado que o facto de o serem, ou de o terem sido, não é garantia para que o continuem a ser ou, caso já existam, que o venham a ser, caso apenas tenham desejo de o ser. Importa assinalar que, ainda hoje, alguns séculos volvidos sobre a instituição do Estado Moderno, o elemento societário, nomeadamente o Estado‑Nação e a Nação-Estado, tem de submeter‑se ao esquema geométrico territorialista do Estado. Apenas alguns povos lograram assumir‑se como nações em diáspora, desde os judeus, entretanto atraídos atraídos pela dificil territorialidade do Estado de Israel, às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, que, da vagabundagem emigrante, estão sempre marcadas pela gravitação da saudade ou pelo desejo de regresso à santa terrinha. ,72,487.