segunda-feira, 5 de março de 2007

Revolução cultural (1966)

Estão, assim, preparados os caminhos para o lançamento, em 1966, da chamada Revolução Cultural. Talvez uma querela entre os antigos e os modernos, segundo Alain Peyerffite. De certo, uma hiperpolitização do quotidiano, nas palavras de Almerindo Lessa. Sem dúvida, um psicodrama psicadélico, conforme Berto Fahri. Aliás, segundo o próprio Mao, cada acto da Revolução Cultural teria de ser uma peça espectacular num pequeno palco. Tratava-se, segundo o citado Peyrefitte, de uma revolução que é lançada, não contra um regime por opositores, mas pelo fundador de um regime, chefe do partido no poder, contra os quadros desse partido e contra o erro no qual esse regime estava a cair. Era, segundo Almerindo Lessa, a procura da Grande Harmonia (Ta Tung), um velho sonho de juventude de Mao que bebera nas teorias políticas de Houang Ti e de Lao Tseu. Concordava também com Sun Yatsen, que a Rússia praticava o marxismo e não o puro comunismo que, na opinião dos dois, era o de Proudhon e de Bakunine posto em prática no tempo de Hoang Siou-Ts'-an sob os Taiping entre 1851 e 1854. Eis, pois, que, entre Abril e Maio de 1966, Mao provoca uma agitação universitária contra a burocracia dominante no partido, fazendo um apelo àquilo que se poderá chamar a elite militante, para esta retomar a iniciativa, superando a elite funcional e a respectiva tendência burocrática e conservadora, para utilizarmos categorias de Francis Audrey. Tudo começa em 16 de Maio com uma circular do Comité Central do PCC, escrita, ao que parece, pelo próprio Mao, onde se proclama que a luta proletária deve estender-se do domínio literário e artístico, para o domínio político, contra os chamados representantes do revisionismo burguês existentes no partido, na universidade e no exército. Logo a seguir, em 25 de Maio, surge na Universidade de Peita/ Beida o primeiro jornal de parede (ta-tzu-pao) marxista-leninista nacional, também directamente inspirado por Mao, onde se passa à acção agitadora junto dos estudantes. Entretanto, Mao, durante dois meses, Junho e Julho, chega mesmo a retirar-se de Pequim voluntariamente. Vai regressar espectacularmente à capital, depois de ter feito o famoso passeio a nado, de 15 quilómetros, ao longo do rio Iansequião. Por essa altura, já o Diário do Povo, fala na Grande Revolução Cultural Proletária, enquanto, em 26 de Julho, se fecham todas as universidades (por uns seis meses que irão durar quatro anos), surgindo também os primeiros guardas vermelhos... A subida ao poder dos revolucionários no XI Plenário do VIII Comité Central não tarda a dar-se, em 8 de Agosto de 1966, numa ofensiva contra os moderados, protagonizados por Liu Shao Ch'i. Aí surge a Declaração de Dezasseis Pontos acerca da Grande Revolução Cultural Proletária, onde esta é vista como o novo estádio da Revolução Socialista para colocar a ousadia e despertar audaciosamente as massas, massas que devem educar-se actuando e onde o pensamento de Mao Tsetung é o guia de acção na Grande Revolução Cultural proletária. Ao mesmo tempo, o ministro da Defesa Lin Piao é nomeado vice presidente do PCC e Liu Shao Ch'i passa para último plano na hierarquia. Em 18 de Agosto de 1966, com o desfile de Tian An Men na presença de Mao, espectacularizam-se os slogans O Leste é Vermelho, bem como Esmagar o Velho Mundo e Criar um Mundo Novo, iniciando-se a revolta dos guardas vermelhos. Como escreve Peyrefitte, o Filho do Céu foi substituído pelo Filho do Povo [... ] Nele, o povo adora-se a ele próprio. É religioso o dogma, religiosa a ascese dos eleitos, religiosa a ascensão dessa personagem de excepção, religiosa a fé popular. Pode também ler-se nos escritos confucianos, o Mestre diz: se o príncipe é em si mesmo virtuoso, o povo realizará os seus deveres, sem que se lho ordene; se não é virtuoso, é escusado dar ordens, o povo não as seguirá. Noutra passagem confuciana: o Mestre diz: aquele que governa um povo dando-lhe bons exemplos é como a estrela polar que permanece imóvel, enquanto que todas as outras se movem à sua volta. É que Mao fundou uma nova religião, tendo toda a habilidade de se fazer passar pelo simples continuador de Marx e de Lenine. Como dizia uma decisão de 8 de Agosto de 1966 do Comité Central do PCC, importa transformar a fisionomia moral de toda a sociedade com o pensamento, a cultura, os usos e os costumes novos que são próprios do proletariado. Era o conceito de revolução cultural precedendo a revolução económica, ao contrário da prática leninista. Tratava-se, no fundo, de uma rejeição do ocidentalismo e, portanto, do marxismo-leninismo. Porque, como assinala Roger Garaudy, Marx é um dos gigantes do pensamento ocidental no que ele tem de mais ocidental [... ] o socialismo científico é um socialismo vazio de toda a transcendência poética. Em 23 de Outubro de 1966, Liu Shao-ch'i já é obrigado a fazer uma autocrítica, isto é, a declarar a derrota. E entre Janeiro e Setembro de 1967 dá-se a intervenção no processo dos operários, sendo criada a Comuna de Xangai, em 5 de Fevereiro, que toma a Comuna de Paris como modelo. Atinge-se também o clímax anárquico, com sangrentos recontros, nomeadamente em Wuhan e Cantão, e uma vaga de xenofobia que leva ao próprio incêndio da Embaixada britânica em Pequim. Ao mesmo tempo, em 17 de Junho, dava-se a primeira explosão de uma bomba de hidrogénio chinesa. Compreende-se, pois, que, a partir de Setembro de 1967, o Exército de Libertação Popular passe a tentar controlar os acontecimentos, enquanto Chu En-lai começa a surgir como a síntese desse paralelograma de forças, com forte apoio de Mao. Isto é, um certo pensamento maotSetung rigorosamente interpretado, de cima para baixo, transforma-se num timoneiro dos acontecimentos. Isto é, o pensamento libertou-se do pensador, transformando-se num abstracto ponto geométrico, susceptível de ser ocupado pela efectiva força que dominasse o centro do poder. Até porque, no caso concreto, Mao vai dando uma no cravo e outra na ferradura, ora apoiando Chu En-lai, ora dando força aos comités revolucionários e a Lin Piao, mas sem nunca ceder às pressões de Liu Shao-ch'i. O melhor exemplo desta euforia ideológica, onde a criatura abstracta de um sistema de pensamento se liberta do criador, está na circunstância de Lin Piao, em 1 de Outubro, chegar mesmo a criar centros de estágio para o estudo do pensamento maotSetung... Mas o verdadeiro timoneiro vai, contudo, ser encontrado nos bastidores do espectáculo. Com efeito, apesar de, em Outubro de 1968, Liu Shao-ch'i ter sido afastado, não foi Lin Piao que passou a comandar a ofensiva. Chu En-lai é que vai ser o efectivo vencedor do processo e passar a controlar a revolução termidoriana. Como dizia um professor da Universidade de Pequim a Alain Peyrefitte: a Grande Revolução Cultural do Proletariado tem por objectivo extirpar o feudalismo e a burocracia; tal como o dragão, cuja cabeça renasce, a burocracia tem tendência a regressar; o próprio feudalismo tem Sete vidas. A Revolução Cultural marcada sobretudo pela instrumentalização dos jovens (há cerca de 15 milhões de jovens guardas vermelhos que se deslocam para Pequim, tendo a maioria entre 12 e 18 anos) não passou de uma grande encenação política de uma revolução para consumo interno e externo. Na verdade, durante esse período, deu-se uma perseguição à verdadeira cultura, especialmente aos livros heterodoxos e aos clássicos que apelavam para o individualismo e o humanismo. Produziu-se também uma reforma do ensino utilitarista, partindo-se do falso princípio de que todo o conhecimento inútil é nocivo. Refira-se que, com a Revolução Cultural, o ciclo normal do ensino superior vai ser interrompido durante 55 meses. A partir de então passou também a ser obrigatório, antes da entrada na universidade, um período de experiência profissional numa unidade de produção, havendo, além disso, uma prévia selecção política. De facto, segundo dados oficiais, dos cerca de 800 000 estudantes universitários existentes em 1966, 60% eram de origem burguesa. Perseguiu-se também a inteligência através das reeducações pelo trabalho manual ou trabalho forçado. Atingiu-se até o cerne da própria existência quando a colectividade passou a ditar o próprio número de filhos que cada família podia ter. Era Malthus, em vez de Marx, através do controlo de nascimentos e da vasectomia. Da retórica, ficaram uns estatutos do PCC de 1973, onde se declara que a classe operária, os camponeses pobres e quase pobres e as outras massas trabalhadoras são os donos do país. Têm o direito de submeter a um controlo revolucionário os quadros do nosso partido e do nosso Estado, nos diversos escalões. Ou alguns ideologismos que aparecem na Constituição de 1975, onde se fala na ameaça de subversão e de opressão da parte do imperialismo e do social-imperialismo. Com efeito, no XII Plenário do VIII Comité Central, realizado de 13 a 31 de Outubro de 1968, onde se preparou o IX Congresso do PCC, que se vai realizar em Abril de 1969, foi posto um fim legal à Revolução Cultural, depois de, em Agosto e Setembro anteriores, se terem liquidado as organizações de guardas vermelhos e de rebeldes revolucionários.
Retirado de Respublica, JAM