sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Leis Fundamentais

Precisando o conceito de leis fundamentais, já o nosso António Ribeiro dos Santos salientava a existência dos inalienáveis direitos da nação no âmbito das leis fundamentais do Estado, desde as primitivas e primordiais às posteriores Se as primeiras se teriam estabelecido expressamente no princípio da monarquia, ou se supusream como tais na sua instituição e formação, já as segundas seriam as que por mútuo consentimento de nossos Reis e dos povos se estabeleceram em Cortes, ou fora delas, sobre as coisas essenciais do governo. As mesmas, longe de ficarem no arcano e confusão, devem ser as primeiras, que mais se declaram , e se ponham em maior luz; para que os povos e os Principes saibam exactamente os seus foros, e conheçam todos sem dúvida alguma e controvérsia, sempre arriscada em semelhantes matérias, quais são os sagrados direitos, por que uns imperam, e outros obedecem, e quais os ofícios, que se devem mutuamente. São entre todas as leis, por sua origem, por sua autoridade, e por seus efeitos as mais sagradas, invioláveis de todo o Estado. Estas afirmações foram produzidas em 1789, em plena "viradeira" de D.Maria I, como censura ao projecto de "Código de Direito Público de Portugal" elaborado pelo pombalista Melo Freire. O facto de, nos finais do século XVIII, se não ter optado pelo conselho de Ribeiro dos Santos, preferindo-se o arcano do despotismo esclarecido, levou a sucessivas rupturas revolucionárias e aos seus contrários contra-revolucionários, cada um decretando a sua "constituição" ideologicamente, segundo as modas estrangeiradas que , pela sua natureza não fundamental, depressa passam de moda e obrigam a sucessivas revisões que tornam conjuntural o que devia ser estrutural e adequado à índole profunda da comunidade de homens que formam Portugal, onde os constitucionalistas contemporâneos, maravilhados pelo dogmatismo conceitual e pela terminologia de códigos constitucionais estrangeiros bem como pelas glosas e anotações dos seus mestres-pensadores, nunca foram capazes de prescutar a mão invisível ou os génios invisíveis da cidade que revelaram os nossos manifestos primordiais, mesmo que poeticamente apócrifos. Impotentes para conservar o que deve ser, sempre tentaram decretar iluministicamente um texto, para que os vindouros fossem obrigados a conservar esse "que está posto", que, aliás, não assume as raízes nem tem saudades de futuro. Ribeiro dos Santos, fiel ao libertacionismo dos juristas da Restauração, como João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia, soube entender o consensualismo dos factores democráticos da formação de Portugal expressão consagrada por Jaime Cortesão - e ousou implantar entre nós um modelo cultural análogo ao constitucionalismo norte-americano e inglês, tentando superar a ilusão das revoluções", que são sempre pós-revolucionariamente frustradas ou contra-revolucionariamente degoladas, pelo sonho de uma reforma, conservadora nos princípios, mas metodologicamente entendida como uma revolução evitada, apesar de marcada pelos objectivos revolucionários da liberdade e da justiça, pessoais e comunitárias. Nele prepassa o subsolo filosófico que animou John Locke e Montesquieu bem como a a militância cívica de John Adams e dos federalistas e triste tem sido o seu destino, dado que continua alcunhado como precursor de um desenraizado liberalismo que cronologicamente lhe sucedeu, mas que curiosamente sempre preferiu o filosofismo do seu rival, Pascoal de Melo, cujos manuais continuaram a conformar gerações estudantis depois de 1820 e de 1834. Leis fundamentais como acção do todo sobre o todo em Rousseau,130,904 Leis fundamentais em Garrett,130,904.

A perspectiva vintista

No mesmo sentido consensualista, adoptado por Ribeiro dos Santos, o Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino de 15 de Dezembro de 1820, proclamava os inalienáveis direitos que a natureza nos concedeu, como concede a todos os povos, que os seus maiores sempre exercitaram e zelaram. Palavras diversas que traduzem, contudo, a mesma substância: a existência de regras que exprimam aos objectivos permanentes e que estabeleçam as estruturas conformadoras básicas de um determinada comunidade. Aí se criticava o desvio despotista do absolutismo: não é uma innovação,é a restituição de suas antigas e saudáveis instituições corrigidas e applicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado;é a restituição dos inalienáveis direitos que a natureza lhes concedeu,como concede a todos os povos;que os seus maiores constantemente exercitaram e zelaram,e de que somente há um século foram privados,ou pelo errado systema do governo, ou pelas falsas doutrinas com que os vis aduladores dos principes confundiram as verdadeiras e sãs noções de direito público.As Côrtes e a Constituição não são cousa nova n'estes reinos:são os nossos direitos e os dos nossos pais. Esta mesma filosofia básica do Estado, que assumia a reforma em nome do próprio tradicionalismo, já aparece também entre os próprios emigrados anti-absolutistas sitos em Londres. João Bernardo da Rocha Loureiro,em O Portuguez,em 1814, se repudia o governo absoluto e despótico, diz também claramente que nenhum apreço damos à democracia pura, preferindo um governo misto como o da Inglaterra ou semelhante à representação nacional dos Estados Unidos da América. Para tanto requer uma Constituição e a restauração das Côrtes e das antigas formas do nosso Governo, que mais se achegam às do governo britânico e tanto distam da maneira absoluta e destemperada por que hoje somos governados. Também Edmund Burke criticava asperamente os homens de leis e os homens de letras por não considerarem que a verdadeira constituição de um país é a constituição histórica, positiva, o modus vivendi. A ideia de leis fundamentais aparece, aliás, no próprio Rousseau, para o qual se as leis civis exprimem a relação dos membros entre si ou com todo o corpo, as leis políticas ou leis fundamentais exprimem a acção de todo o corpo agindo sobre si próprio, isto é, a relação do todo com o todo ou do soberano com o Estado.

A ideia de estabelecimentos constitucionais contra o despotismo

O citado António Ribeiro dos Santos, defendendo o modelo de liberdade política das monarquias democráticas, considerava que o mesmo era confirmado pelos princípios portugueses das cortes como estabelecimentos constitucionais, porque sem elas os reis não podiam exercitar o direito legislativo, ou fosse fazendo leis gerais e perpétuas, ou dispensando-as ou revogando-as, nem impor tributos, nem alhear os bens da Coroa, nem cunhar nova moeda, ou alterar a antiga", "nem fazer a guerra", "nem resolver e deliberar os outros negócios mais graves do seu Estado". E isto porque "em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei.Tudo o mais é arbitrário; e do arbitrio nasce logo necessariamente o despotismo

A base representativa da constituição histórica

Portugal, antes de 1822, também tinha uma Constituição histórica que, como dizia o então panfletário do vintismo, Almeida Garrett, se se fundava em sólidos e naturais princípios, como o da base representativa e da derivação do poder real do princípio democrático, era, no entanto, destituída de garantias e remédios legítimos para os casos de infracção da lei positiva ou aberração do seu espírito e forçosamente corria o perigo de ser mal conhecida, e esquecida da Nação, desprezada e, portanto, infringida pelo Governo.

Falta de verbalização e de codificação

O problema, como referia o miguelista José Acúrsio das Neves, talvez estivesse na material circunstância de não estar recopilado tudo isto em um caderno de 100 páginas, dividido por títulos, capítulos , e artigos mui pequenos, segundo a moda. Um pormenor que, por exemplo, não constituiu qualquer impedimento para que os britânicos se constituissem na mais antigas das democracias ocidentais. A nossa constituição histórica, com efeito, era constituída por aquele tipo de normas que, conforme a recente teorização de Friedrich Hayek, são observadas na acção sem serem conhecidas do actor sob a forma de palavras ('verbalizadas' ou explícitas). Normas que, em primeiro lugar, se manifestam numa regularidade de acção e que, em segundo lugar, vêm a ser observadas pelo facto de conferirem ao grupo que as pratica um poder superior mas sem que esta consequëncia seja prevista por aqueles que estas regras guiam.Isto é, não por serem inatas, mas p or fazerem parte de uma herança cultural Com efeito, os britânicos seguem as respectivas leis fundamentais tal como os portugueses seguiam a respectiva constituição histórica. Porque tais normas constituem uma receita que lhes deu, ou lhes tinha dado, bons resultados, tanto na harmonia social interna como pelo plena realização do respectivo poder, no contexto internacional.

Leis fundamentais escritas

Na verdade, antes das constituições escritas do liberalismo, já existiam leis fundamentais, aquilo que se designa por Constituição Histórica, reunindo leis escritas e não escritas. Em Portugal, entre as leis fundamentais escritas, para além das de 1674 e 1698 sobre a tutela dos príncipes menores e a regência do reino, valiam como leis fundamentais até 1820 as Actas das Cortes de Lamego, documento apócrifo, forjado pelos alcobacenses durante a dinastia dos Filipes, mas formalmente adoptado depois de 1640, que estabelecia uma série de princípios sobre a natureza do Governo e a sucessão da Coroa. Aí se proclamava que o Senhor Rei com a espada nua na sua mão, com a qual entrou na batalha, disse:Bendito seja Deus, que me ajudou, com esta espada vos livrei e venci nossos inimigos e vós me fizeste Rei e Companheiro vosso e pois me fizeste, façamos Leis pelas quais se governe em paz a nossa Terra.Disseram todos: queremos Senhor rei e somos contentes de fazer leis, quais vós mais quiserdes, porque nós todos com nossos filhos e filhas, netos e netas , estamos a vosso mandado.

Leis fundamentais consuetudinárias

Mas o essencial estava nas leis fundamentais não escritas ou consuetudinárias, definidas por António Ribeiro dos Santos como costumes gerais e notórios ... introduzidos de tempo imemorial por consentimento tácito dos seus Principes , e dos estados do Reino e confirmado por uso constante e prática de acções públicas e reiteradas. Destas, refiram-se as seguintes: - a profissão da religião católica; - a indivisibilidade do reino; - a indivisibilidade dos bens da Coroa; - o estabelecimento dos três estados do reino; - a liberdade do povo se tributar; - a estabilidade do valor da moeda; - o provimento dos ofícios em naturais do reino. Todas estas normas estavam marcadas pela ideia básica da defensão, conservação e aumento do Reino. Partiam do princípio de que o poder régio ou político está em toda a República,Povo ou Comunidade, conforme a expressão de Francisco Velasco Gouveia, porque procede da razão natural da conservação que per direito natural não está determinado o modo de governar. Do mesmo modo se admitia o consensualismo de que todo o poder se deve temperar pela justiça e pela equidade, conforme as palavras de Manuel Rodrigues Leitão.

Retirado de Respublica, JAM