terça-feira, 20 de janeiro de 2009

“A Anatomia da Revolução” revisitada

Depois de um desafio acidental, em sede de cooperação espontânea, da que ainda pode acontecer na universidade dos nossos corações, dou comigo a colmatar as páginas ainda por preencher da revista anual da Escola que me deu formação académica superior, com uma recensão de uma obra a que tenho dado, novamente, uma merecida atenção.

É assim, pois, que acabo de decidir incluir na rubrica Politilendo algumas (pelo menos) destas minhas recensões. Esta é, também aqui, a primeira:

A Anatomia da Revolução” revisitada (Para Uma Teoria da Revolução)

Pelo Professor José Rodrigo Coelho, licenciado pelo ISCSP

1. Porque estamos numa Escola que dedica muito do seu potencial à investigação politológica, não podíamos deixar de levar à introdução deste profundíssimo tema a necessidade pedagógica que, em língua portuguesa, tão tardiamente tem apelado à elaboração de uma Teoria da Revolução. Pelo contrário, desde as primeiras décadas do século vinte, a profusa divulgação de obras sobre o tema, sobretudo nos países anglo-saxónicos, tem-se revelado de uma extrema riqueza, ainda enaltecida, justamente, pela utilidade pedagógica que tem faltado, noutros países (como é o caso de Portugal), aos estudiosos que se entregam à análise científica deste importante fenómeno das sociedades modernas.

É por estas particulares razões que se torna epistemologicamente imperativa a revisitação de uma obra tão fundamental e angular nas referências bibliográficas que se cruzam, a montante (que nela contribuíram e operaram) e, sobretudo, a jusante (que a referenciam), ao falar do tema da Revolução, quanto o é a “The Anatomy of Revolution”, de Crane Brinton (Vintage Books, New York).

Pedagogicamente necessária e epistemológicamente imperativa, dizemos. Porquê?:

- pela primeira razão, cremos que é precisa uma notória linha de orientação para o ensino-aprendizagem (latu sensu, maximae para a enculturação) deste fenómeno, essencialmente pelas vias formalmente instituídas para esse fim, como são os conteúdos curriculares inscritos nas disciplinas afins das instituições de ensino; consequentemente, pela mais esclarecida e, por isso, mais consciente assumpção de uma cidadania efectiva (mais participada) que daí advém, através da interiorização de valores sociais que, coloquialmente, também mas apenas são aprendidos com os inevitáveis desvios e eventuais erros característicos da identificação por via ideológica ou adquiridos no seio dos grupos informais;

- pela segunda das razões, sobretudo pela construtividade adveniente da acção concreta que o sujeito (os cidadãos, entenda-se) vive, na confrontação histórica dos factos com os conceitos e/ ou teorias então conhecidas/ aprendidas (o objecto). Ideias e/ ou factos atinentes ao fenómeno da revolução tornam-se, assim, mais aceitáveis evidências que as meras observações desprovidas daquela orientação pedagógica, o que é mais enriquecido quanto mais profunda e disseminada se estabelecer a definição curricular deste domínio académico.

É neste sentido que aqui apresentamos esta recensão, com a pretensão de revisitarmos a referida obra basilar neste domínio disciplinar, tentando enquadrar a importância da sua referência bibliográfica (tanto quanto este espaço nos permite) com a evolução histórica observada nos aspectos que respeitam a revolução.

2. Primeiro que tudo, realça da última edição[1] a atenção dedicada pelo autor à necessidade de acompanhar a evolução semântica que o termo revolução ia adquirindo, sobretudo durante os anos que a terminologia corrente, com ele, percorrereu o período histórico compreendido entre as primeiras décadas e o terceiro quartel do século vinte. “Vivemos no centro dos rebates da guerra e da revolução, daquilo que pode ser não injustamente chamado revolução à escala mundial”, diz-nos no seu capítulo introdutório, quando trata, justamente, de traçar a abordagem epistemologicamente pertinente do conceito, mesmo que, com isso, pretendesse estreitar o âmbito das significações do termo revolução, para melhor nos situarmos nas suas deduções históricas contextualizadas, directa ou indirectamente (por recurso à documentação histórica possível) observáveis. Indubitavelmente, releva desta sua primeira aproximação ao conceito a própria escatologia do que se pretende apontar como revolucionário, mesmo que nos fiquemos pela simples posição cepticista perante o fenómeno eminentemente sociológico que é a mudança. Nesse sentido, é ontologicamente bem possível que estejamos perante algo que mais não é que um tipo ideal weberiano, restando-nos a análise, compreensão e tipificação explicativas desse fenómeno social. Se a tanto não chegarmos, concluiremos, sempre com estas primeiras notas do autor, pela aparente surpresa com a forma como apresenta os dados históricos (sociais, económicos, políticos) com que constrói as suas conclusões e fundamenta o facto de as indicadas “grandes revoluções” (Inglesa, Americana, Francesa e Russa) terem ocorrido em sociedades que, ao seu tempo, atravessavam períodos de prosperidade.

3. Como segunda nota de realce, ainda atinente aos aspectos gerais desta obra, está o seu enquadramento histórico-bibliográfico, que o autor evidencia ao seguir a abordagem metodológica histórico-comparativa, tentando, com notório êxito, simultaneamente encontrar as tais uniformidades nos esquemas conceptuais de análise das “grandes revoluções” (e, eventualmente em última análise, em qualquer movimento social que a tal aspire) — isso pode ser seguido, praticamente, ao longo de todos os capítulos do livro —, e, por outro lado, referir os mais actualizados estudos, pesquisas e outros trabalhos que nos vários domínios das ciências sociais (sobretudo citando os mais recentes modelos de análise sócio-económicos, as emergentes reformulações teórico-sociológicas e a revolução na historiografia “pós-romântica”) vinham a lume, tanto sobre os períodos históricos em que se verificaram os factos marcantes das três revoluções ocidentais, como sobre os períodos em que, à sua época, melhor e mais profundamente permitiram recolher dados factuais que proporcionaram uma visão mais realista da Revolução Russa (veja-se, no capítulo 8, V. Rússia: Revolução Permanente?), e que alargaram o espectro de casos de “convulsões” sociais passíveis de enquadrar, tipologicamente, estes particulares fenómenos de mudança.

4. Em terceiro lugar, culminando nas observações à obra no seu todo, e ainda no seguimento do ponto anterior, ressalta-nos o excelente trabalho de interdisciplinaridade conseguido por Brinton, ao extender os seus recursos de análise e de critica tanto à História (sobretudo, como é de esperar de um eminente historiador do seu tempo), social e económica, como às tipificações teórico-conceptuais da Sociologia e da Ciência Politica, com os quais ultrapassou a estrita visão unidisciplinar deste fenómeno que, por si, constituiu um objecto de estudo que almejou um estatuto científico, inequivocamente transdisciplinar, angariando para a politologia moderna (de pendor caracerísticamente holístico) a localização crono-histórica de um dos seus pioneiros.

Acresce, ainda, o que desde os primeiros capítulos ressalta como mais um aspecto epistemologicamente relevante, que é o da imparcialidade característica nas posições que o autor assume nas suas proposições e afirmações, em qualquer dos campos disciplinares sobre que deposita (qual dissecação laboratorial dos factos com que trabalha) as suas atenções. Contribuiu assim, de facto, na abordagem de fenómenos sócio-políticos potencialmente polémicos como este (especialmente por serem tão abrangentes quanto a dificuldade assumida na sua identificação), para a desmistificação de certos tabus ou verdades semiobscuras, com que alguns intelectuais receosos da sua cumplicidade ideológica não gostam de ver tratado o tema[2], mesmo quando os tempos que vivemos são, como já disse o autor, de “rebates da guerra e da revolução”.

5. Finalmente, algumas particularidades da obra ainda devem ser aqui assinaladas, sobretudo as que se reportam à forma inovadora como exemplifica a utilização de termos referente a alguns dos aspectos que se ligam à tipologia das revoluções, das suas fases e dos agentes nelas intervenientes, sem nos esquecermos do já referido recurso do autor a trabalhos de outros estudiosos, seus parceiros contemporâneos.

Ainda dentro deste espírito de síntese, não poderia deixar de anotar, com a devida relevância desde logo aqui pretendida, e neste pequeno espaço possível de exprimir, a forma inovadora com que Crane Brinton lança o seu repto à perspectiva “paradoxal” da revolução. Parece-nos que, por todos, este é um sinal de advertência para uma eventual redefinição conceptual do fenómeno, demasiado complexo para ser trazido, pela pedagogia corrente, à mera constatação de um processo mais ou menos violento, mais ou menos profundo, mas repentino ou de curta duração — tudo o que podemos deduzir, em várias partes da obra atinentes a este aspecto temporal (ou crono-processual) da ocorrência de uma revolução, nos leva a ponderar e concluir por um período de tempo nunca inferior ao de uma conjuntura histórica (no mínimo), podendo apenas ser colmatado, efectivamente, ao longo de mais que uma geração (se é que, realmente, tal pode ser conseguido: “... geralmente, muito do que os homens fazem, dos seus sentimentos, ..., não pode de forma nenhuma ser mudado rapidamente, e a tentativa dos extremistas para os mudar por decreto, pelo terror, e pela exortação falha, a ‘convalescença’ trá-los de novo de forma não muito alterada”.[3]


[1] BRINTON, Crane, The Anatomy of Revolution, Revised and Expanded Edition, Vintage Books, New York, 1965.

[2] Veja-se sobre este aspecto, por exemplo, a chamada de atenção do autor para o facto de a “revolução” ser uma palavra tão preciosa para muitos da tradição democrática, e especialmente para os Marxistas, que eles rejeitam com indignação aplicá-la a movimentos como os da assumpção, relativamente não sangrenta, mas certamente violenta e ilegal, do poder por Mussolini ou Hitler. Estes movimentos, dizem-nos, não foram revoluções porque não tomaram o poder a uma classe e o entregaram a outra. Obviamente que com uma palavra em certos aspectos tão imprecisa como “revolução” podemos brincar com toda a espécie de trocadilhos como este. Mas para o trabalho científico da mudança social parece sensato aplicar a palavra revolução ao derrube por Fascistas de um governo parlamentar, legal e estabelecido. Se assim é, então as nossas quatro revoluções apenas são uma espécie de revolução, e não devemos tentar fazê-las suportar o fardo de generalizações pretendidas aplicar a todas as revoluções., (ob. cit., pág. 261-262, tradução nossa).

[3] Idem, pág. 262, tradução nossa.