quinta-feira, 14 de junho de 2007

Nihilismo

Do lat. nihil, nada. Expressão cunhada pelo romancista russu Turguenev em 1862, ligando-a à esterilidade do que existe. Uma forma de super-racionalismo individualista, ligado às utopias sociais anarquistas, segundo as quais o homem deve livrar-se de regras, construindo, na solidão, as suas próprias regras, numa ideia libertacionista. Conforme salienta Herzen, o homem verdadeiramente livre cria a sua própria moralidade.
Em termos de movimento político, destacam-se os nihilistas russos, surgidos na década de sessenta do século XIX. No plano filosófico, Nietzsche e Sartre. Cfr. Relativismo. Albert Camus em O Homem Revoltado. Estavam, assim, lançados os principais ingredientes de que se vão alimentar o populismo e o nihilismo, esse ascetismo sem Graça, como lhe chamou Berdiaev. Piotr Lavrov (1823-1900), em Cartas Históricas (1861-1869) foi um dos mais importantes vulgarizadores do populismo e do movimento de ir ao povo (Khozdéniié V Narod). Foi Herzen, em artigo publicado no Kolokol, de 1 de Julho de 1861, que, lançando a interrogação O que é preciso para o povo?, respondeu: Muito simplesmente: terra e liberdade. Acontece apenas, como afirmava Nikolai Tchernichevski (n.1828), que a estrada da história não é o asfalto da Avenida Nevski [...] Aquele que receia sujar as botas não deve tomar parte em actividades públicas. Na verdade, depois de Herzen, o campo dos ocidentalistas vai dividir-se entre os liberais e os socialistas revolucionários, destacando-se, do revolucionarismo, o desviacionismo nihilista que, segundo o mesmo Berdiaev, é uma manifestação puramente russa, desconhecida no Ocidente. O termo nihilismo foi, aliás, cunhado por Ivan Turguenev (1818-1883) num romance, Pais e Filhos, aparecido em 1862, a propósito do protagonista Bazarov, para quem só poderíamos vangloriar-nos da estéril consciência de compreendermos, até um certo ponto, a esterilidade do que existe.
Um outro autor, Dmitri Pissarev (1840-1868) através da revista Russkoe Slovo, glosando a passagem do romance de Turguenev, vai dizer sou estranho à ordem das coisas que existem, não tenho, pois, que intervir nelas. Com efeito, para Pissarev multiplicar os homens que pensam é o alfa e o ómega de todo o desenvolvimento social.
Por outras palavras, para esta corrente, defensora do realismo e da luta pela existência, cada um devia apenas acreditar em si mesmo e desconfiar tanto das classes dirigentes como do povo. A emancipação da pessoa apenas poderia acontecer se todos fossemos criticamente pensantes e só por esta via de independentismo é que seria possível a emancipação pessoal. A este respeito, assinala Albert Camus, no ensaio O Homem Revoltado, que o nihilismo, estreitamente ligado ao movimento de uma religião desiludida, redunda assim em terrorismo. No universo da negação total, por meio da bomba e do revólver, e também graças à coragem com que avançavam para a forca, esses jovens procuravam escapar à contradição e criar valores que lhes faltam. Até ali, os homens morriam em nome do que sabiam ou julgavam saber. A partir desses jovens, contraiu-se o hábito, mais difícil, de cada um deles se sacrificar por qualquer coisa de que nada sabiam, a não ser o seguinte: era preciso morrer para a conhecerem e implantarem [...] O futuro é a única transcendência dos homens sem Deus.
Importa também referir a acção de Vissarion Belinski (1811-1848), que, tendo começado por um socialismo individualista, vai cair, depois do choque hegeliano, numa espécie de revolta metafísica, como assinala Camus. A tal revolta que o levava a proclamar a negação é o meu Deus, como há pouco tempo o era a realidade. Os meus heróis são os destruidores do que é velho. Estavam criadas assim as condições para que surja o político do movimento, o já referido Nikolai Tchernishevski (1828-1889), para quem seria importante que o poder passasse não de jure, mas de facto para as mãos da classe mais baixa e mais numerosa: camponeses, assalariados e artesãos até porque o mais terrível de tudo é sempre o Leviathan, o monstro informe que tudo vai tragando.
Contudo, Tchernishevski prefere adoptar a via literária para a revolução, começando por meditar sobre As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade, de 1855, até porque, segundo ele, nas nações onde a vida espiritual e social alcançou um desenvolvimento elevado existe, se assim se pode dizer, uma divisão de trabalho entre os diversos ramos da actividade mental, ao passo que entre nós não conhecemos senão um: a literatura. Dois anos depois, já considera que o socialismo pode chegar à Rússia antes de se desenvolver completamente o capitalismo, isto é, antes que sejam destruídas as raízes colectivistas que permaneciam na Rússia rural. E na sua Crítica dos Preconceitos Filosófico contra a Posse Comunal (Obshina), de 1858, declara: não somos seguidores de Hegel e, muito menos, de Schelling, mas não podemos deixar de reconhecer que os dois sistemas prestaram grandes serviços à ciência com a descoberta das formas gerais pelas quais se move o progresso histórico. O resultado fundamental desta descoberta está no seguinte axioma: pela sua forma, a etapa superior do desenvolvimento é similar ao ponto de partida. É aliás a este autor que cabe a elaboração do guia moral de todo o populismo russo, o romance Que Fazer?, escrito quando Tchernishevski estava detido, entre 1862 e 1864. Mikhail Bakunine (1814-1876), por seu lado, na sua Confissão a Nicolau I, peça escrita no cárcere, vem dizer que o Estado mais pequeno e inofensivo do mundo até nos seus sonhos se torna igualmente criminoso, arguindo a necessidade da revolução social, porque a paixão da destruição é a paixão criadora. Assim, proclama que só temos uma pátria: a revolução universal. Essa revolução total só poderá fazer-se pela carnificina. Ultrapassará em horror tudo o que a História conhece, tudo o que o Ocidente possa imaginar.
Estes extremismos vocabulares reflectem, com efeito, um pensamento maniqueísta que distinguia os puros, os revolucionários, da canalha popular do proletariado: a massa rural, mas selvagem, virgem de qualquer civilização burguesa, encarna todas as virtudes e permanece a fonte pura de todas as revoluções. Neste sentido, o mesmo autor dizia a Michelet : a Rússia nunca será um justo centro [...] Não fará a Revolução apenas para se livrar do czar Nicolau. Noutra carta, escrita a Herzen, observava: não acredito nem nas constituições nem nas leis. A melhor das constituições não podia contentar-me. Necessitamos de outra coisa: o impulso, a vida, um novo mundo sem leis, e portanto, livre. Só que, para o mesmo Bakunine, conforme a Confissão, esse mundo livre precisava de um forte poder ditatorial, que teria a função exclusiva de levantar e educar as massas populares. Isto é, um poder livre por tendência e espírito, mas sem formas parlamentares, que imprimisse livros de conteúdo livre, mas sem liberdade de imprensa, rodeado por gente que pensasse do mesmo modo, iluminado pelo seu conselho, reforçado pela sua livre cooperação, mas não limitado por nada nem por ninguém. Conforme salienta Hélène Carrère d'Encausse, a revolta de Bakunine era feita à imagem do campesinato russo: dionisíaca. É a fraternidade das grandes coortes que seguiam Pugatchev, é a revolta dos bandidos generosos. Ele próprio assume esta luta pela vida e pela morte entre a Rússia do povo e a Rússia do Estado, acreditando que se aproximavam os tempos de Stenka Razine [...] Então como agora, toda a Rússia camponesa e trabalhadora se está levantando [...] à espera de uma liberdade nova e autêntica que já não virá de cima, mas de baixo. É destas ideias que vai surgir o típico terrorismo russo dos finais do século XIX, essa luta entre os intelectuais e o absolutismo em presença do povo silencioso, segundo as palavras de Camus, onde se destaca o grupo Terra e Liberdade (Zemlia i Volia), criado em 1876, que, três anos depois, se cinde entre a facção Partilha Negra (Tchorny Peredial), onde participa Plekhanov, que apostava na defesa da redistribuição da terra, e o grupo Vontade do Povo (Narodnaia Volia), apenas voltado para o terrorismo individual do quanto pior melhor, visando, sobretudo, provocar a autoridade para esta desencadear medidas ainda mais repressivas. Como refere Camus, estava prestes a surgir a distinção entre duas raças de homens: uma assassina uma só vez e paga o feito com a própria vida. A outra justifica milhares de crimes e condescende em ser paga por meio de honrarias. Por seu lado, Nietzsche, já considerava que podemos servir-nos no nihilismo como um martelo formidável, para quebrar, suprimir as raças que degeneram e morrem, abrir a via a uma nova ordem de vida, inspirar ao que degenera e perece o desejo do fim.
Entre os principais terroristas, que, por não acaso, são quase todos romancistas frustrados, destaca-se Piotr Zaitchnevski (1842-1896), o adolescente autor do Manifesto Jovem Rússia de 1862, defensor de uma forma russa de jacobinismo. Já Serguei Netchaev (1847-1882), fundador da Sociedade do Machado, morto na prisão, foi redactor, em colaboração com Bakunine, de um Catecismo Revolucionário, escrito em 1869, na Suíça, onde se declara que o revolucionário é um homem antecipadamente condenado. Não pode permitir-se relações apaixonadas, nem possuir coisas ou seres amados. Devia mesmo despojar-se do seu nome. Tudo nele se deve concentrar numa única paixão a revolução. Finalmente, Piotr Tkaktchev (1844-1885) assume-se como defensor de uma espécie de homem novo, preconizando a conquista do poder por uma minoria revolucionária, com utilização do aparelho governamental para o lançamento de uma revolução a partir de cima. Com efeito, Tkaktchev, a partir do jornal O Rebate (Nabat), rejeitava as teses espontaneístas defendidas pelo populismo, considerando que o povo deixado a si próprio não seria capaz de realizar a revolução social... esse papel e essa missão pertencem exclusivamente à minoria revolucionária. Assim, partindo do princípio que a força material se centra no poder estatal, dizia que a autêntica revolução só pode realizar-se com uma condição: a conquista do poder estatal pelos revolucionários. Por outras palavras, o objectivo próximo e imediato da revolução tem de consistir precisamente em conquistar esse poder e em transformar o Estado conservador num Estado revolucionário. Para ele, a luta só pode realizar-se com êxito nas seguintes condições: centralização, severa disciplina, rapidez, decisão e unidade na acção. A concessão, a incerteza, o compromisso, a fragmentação da ordem, a descentralização das forças na luta não fazem mais do que debilitar as suas energias, paralizar a sua obra, eliminar toda a possibilidade de vitória. A actividade revolucionária construtiva, pelo contrário, ainda que tenha de levar a cabo a actividade destrutiva, tem que basear-se, pelo seu carácter fundamental, em princípios absolutamente opostos. Se a primeira se baseia, antes de mais, na força material, a segunda apoia-se numa força moral. A primeira tem sobretudo em conta a rapidez e a unidade, a segunda, a solidez e a vitalidade das transformações conseguidas. A primeira deve realizar-se com a violência, a segunda com a convicção. A última ratio da primeira é a vitória, a última ratio da segunda é a vontade, a razão do povo.
Retirado de Respublica, JAM