segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

ESTADO DE DIREITO

A realização prática do pensamento libe­ral conduziu à formação, a partir do séc. xvii na Inglaterra e do séc. xviii no continente europeu e na América, de um tipo de Estado moldado sobre os direitos individuais naturais (liberda­de, segurança e propriedade), subordi­nado a normas jurídicas concebidas co­mo expressão da razão, encarregado de definir e executar o Direito e de, por essa forma, delimitar reciprocamente e tutelar as esferas pessoais de acção, e organizado de maneira a evitar o arbítrio e o despotismo da autoridade. Os direi­tos individuais constituíram então ob­jecto de solenes declarações; procurou assegurar-se a racionalidade da lei pela atribuição da competência para apro­vá-la a assembleias representativas e pela exigência de que possuísse conteúdo geral; a garantia contra o arbítrio e o despotismo encontrou-se na separa­ção dos poderes e na estrita subordina­ção à lei da actividade pública não le­gislativa, concebida toda, de resto, co­mo execução daquela. A este tipo de Estado se chamou, por oposição ao Estado-polícia anterior, Estado de di­reito, e a um duplo titulo: por se en­contrar juridicamente submetido a cri­térios objectivos de conduta e por estar posto ao serviço do Direito. Mas, por­que traduzia um determinado entendi­mento substancial do Direito, de raiz jusnaturalista-individualista e vazado na doutrinação liberal, e correspondia à ideologia da classe burguesa, então as­cendente, veio também a ser designado, em termos mais especificados, por Es­tado material de direito, Estado liberal de direito e Estado burguês de direito. A evo­lução posterior, quando não levou à constituição de modelos de Estado acentuadamente diversos deste, totalitários ou abertamente autoritários, modificou de maneira profunda as suas caracterís­ticas. Por um lado, o desenvolvimento do principio democrático, em sentido formal, acompanhado da substituição do jusnaturalismo racionalista por um po­sitivismo voluntarista na compreensão do Direito, fez com que se perdesse a noção dos requisitos substanciais da legislação, esta passasse a ser concebida como expressão da vontade soberana do povo ou dos seus representantes e o equilíbrio orgânico se perdesse a favor do parlamento. Por outro lado, se é certo que nos últimos tempos se assistiu à preocupação de reafirmar e garantir os direitos fundamentais, embora redu­zidos alguns na sua extensão, e de asse­gurar de modo mais estrito a submissão dos órgãos do Estado às normas jurídi­cas, designadamente através da institui­ção ou do reforço de sistemas de fiscali­zação da conformidade da sua actuação com as regras constitucionais — mani­festando-se aqui a tendência para uma forma de Estado jurisdicional —, a as­censão da classe trabalhadora e as difi­culdades encontradas pelo capitalismo liberal obrigaram, sobretudo após a I Guerra Mundial, ao reconhecimento dos direitos sociais, a par dos indivi­duais, e à intervenção do Estado na conformação da vida colectiva, a fim de conduzir o processo económico e de procurar estabelecer um mínimo de justiça social. As leis tenderam a ganhar um sentido de instrumentos de realiza­ção de objectivos determinados, exter­nos em relação a elas, e a aproximar-se da administração: começou a generalizar--se a chamada «lei-medida» (Massnahmegesetz) e os governos, ao mesmo tempo que viram definitivamente reconheci­das amplas faculdades para a emissão de regulamentos autónomos, encontra­ram-se na necessidade de, por uma forma ou outra e mais ou menos largamente, utilizar poderes legislativos. Posterior­mente, a contraposição governo-assem­bleia foi perdendo significado no próprio plano institucional, na medida em que a formação de partidos disciplinados e de coligações relativamente estáveis so­lidarizou a maioria parlamentar com a equipa governativa. Não se deixou, po­rém, e apesar de todas estas transforma­ções, de continuar a recorrer à fórmula E. D., que entretanto havia ganho valor político, para caracterizar as modalidades de organização colectiva que se iam manifestando: assim se chegou a falar ou se fala, nalguns casos com evi­dente abuso, de Estado nacional socialista, Estado fascista ou Estado socialista de di­reito, por oposição a Estado burguês de direito, de Estado formal de direito ou Estado de legalidade, em contraste com Estado material de direito e de Estado social de direito, contraposto a Estado liberal de direito. O que a História mos­tra, em todo o caso, é que a qualifica­ção de E. D. se apresenta susceptível de graduação: como mínimo supõe a su­bordinação jurídica da actividade esta­dual a critérios objectivos de conduta; mas a intensidade da submissão ao Di­reito varia conforme o grau de indepen­dência das normas jurídicas relativamen­te aos diversos órgãos estaduais (desig­nadamente, portanto, consoante se admi­ta ou não a sujeição do Estado a um Direito que transcenda, se estabeleça ou não a rigidez constitucional, se con­centre ou desconcentre o poder legisla­tivo), o grau de especificação das mes­mas normas e as garantias instituídas para o seu respeito, ao mesmo tempo que a medida da vinculação funcional do Estado ao Direito depende da posição relativa dos fins jurídicos e não jurídicos daquele. E o que se verificou foi que os elementos de E. D., francamente pre­dominantes no período liberal, se viram afastados ou muito restringidos em fa­vor dos de um Estado político-administrativo, pêlos totalitarismos ou autoritarismos do séc. xx, para, reforçados em alguns aspectos depois da última guerra, concorrerem hoje, nos chamados Esta­dos sociais, com os traços próprios de um Estado administrativo. Todavia, o uso da qualificação de E. D. em termos abso­lutos só pode considerar-se legítimo quando, pelo menos, se encontrem re­conhecidos e efectivamente assegurados os/direitos fundamentais do Homem, a independência dos tribunais e a legali­dade da Administração.

Artigo de M. Galvão Teles, retirado da Enciclopédia POLIS, vol.2, cols. 1185-1188.


Do Estado de Direito formal ao Estado de Justiça

A expressão Estado de Direito, dita em alemão Rechtsstaat e que tem o seu equivalente no anglo-saxónico rule of law, começou a ser predominantemente utilizada a partir de finais do século XIX, nomeadamente pelo impulso de A. V. Dicey, na obra Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de 1885. Numa primeira fase, o tópico terá querido apenas dizer Estado de Direito Formal, isto é, o Estado onde haveria igualdade da lei ou igualdade de todos perante a lei. Numa segunda fase, passou a exigir algo de mais complexo, quando se não reduziu o direito à lei, mas antes a algo de mais transcendente, a Justiça. É que, num Estado de Direito como Estado de Justiça, já não basta a mera igualdade da lei, exigindo-se algo de mais profundo, a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei, a tal igualdade global, identificada com a justiça, que se impõe o tratamento igual daquele que é igual, também exige o tratamento desigual daquele que é desigual. Tudo isto, para salientarmos que o tópico Estado de Direito é bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo. Na verdade, o conceito de Estado de Direito tem um carácter fecundante e problematizante, só podendo ser entendido em termos de polaridade face a um Estado de Não Direito, desde os Estados absolutistas que precederam as Revoluções Atlânticas às experiências autoritárias e totalitárias dos nossos tempos.

Estado de Direito e despotismo

Porque, o que estava antes, e o que está sempre em regime de ameaça, é o despotismo, conforme a clássica definição de Montesquieu. Essa relação de senhor/escravo, contrária à lógica do aparecimento do Estado de Direito. O despotismo que, para Blandine Barret Kriegel é astenia do político,anemia do jurídico,ausência de deliberação. Onde o poder é tudo e a política não é nada,o comando é absoluto e a lei desvanece‑se pelo que a opressão se torna implacável e a administração ineficaz. Nele o público é rebatido pelo privado e o político prostra‑se no doméstico.Os litígios públicos,os debates colectivos,são substituidos pelas intrigas palacianas e pelas querelas familiares. Refira‑se que a Barret‑Kriegel considera que o Estado, a Soberania e o Direito constituem os fundamentos da liberdade pelo que todos os que têm como programa a supressão do Estado tendem a favorecer o aparecimento de formas ofensivas da própria dignidade humana. Para a autora em causa quanto mais Estado mais liberdade. Porque o Estado não é o Leviatão mas o Libertador, aquele que encaminha o poder pela via direita.Porque o poder não estatizável,isto é, não dependente do controlo do direito, tende a fragmentar‑se e a transformar‑se na pura força. Considera, aliás, que o Estado de Direito foi marcado pela ideia de um poder que foi capaz de construir uma civilidade política, instituída, não sobre a guerra e o direito à conquista, mas sobre a justiça e a negociação jurídica. Um Estado de Direito que teve em Espinosa, Bodin, Hobbes e Locke. Um modelo fundado no direito natural e nas referências bíblicas ao Estado dos Hebreus, a uma sociedade de paz estabelecida por um contrato ‑ em vez de uma sociedade constituída pela guerra ‑ segundo o modelo do pacto bíblico estabelecido entre Deus e Abraão e , depois, entre Deus e Moisés Barret‑Kriegel cita, a propósito, Montesquieu para quem no despotismo tudo se reduz a conciliar o governo político e civil com o governo doméstico,os oficiais do estado com os do serralho, onde o vizir é o déspota dele próprio e cada oficial particular,o vizir. Também Hegel considerava que o despotismo se caracteriza por aquela ausência de lei em que a vontade particular enquanto tal, seja a de um monarca, seja a de um povo, vale como lei ou, antes, vale em vez da lei. Do mesmo modo Benjamim Constant referia a existência de despotismo, embora de tal situação aproxime aquilo que designa por usurpação. Para ele os conquistadores dos nossos dias querem que o respectivo império apresente uma superfície única sobre a qual o olho soberbo do poder se passeia sem encontrar qualquer desigualdade que o fira ou limite a sua visão.O mesmo código, as mesmas medidas, os mesmos regulamentos, e, se se lhe puder chegar gradualmente, a mesma língua:eis o que proclamam como perfeição de qualquer organismo social.

O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do estado

Porque, como disse Fernando Pessoa, o Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado. Porque, como escreveu o nosso Manuel Rodrigues Leitão (1630-1691), nem tudo o que se pode é lícito, quem faz tudo o que pode , está muito perto de fazer o que não pode. E como já dizia o nosso dramaturgo quinhentista António Ferreira, deve à lei o que a faz obediência. Porque todo o poder num Estado de Direito é um poder-dever, um encargo, um ofício. O Estado de Direito é, com efeito, o Estado da nova legitimidade. Traduz o ideal político de um poder que é um poder-dever (o officium de S.Tomás ou o trust de John Locke), de um poder que é potestas com auctoritas onde o detentor do poder é servidor, servus ministerialis, um escravo do fim para que lhe foi conferido o poder. Onde quem abusa do poder, como quem abusa do direito, deixa de ter poder, tanto pela usurpação, essa contrafacção da liberdade do despotismo doce, como pisando as raias do despotismo propriamente dito. O trust é um fiduciary power, um poder-dever, uma missão, um encargo que o povo confia àqueles que o representam. Não há dúvida que o Estado de Direito significa estar o governo sujeito, em todas as suas acções, a normas previamente estabelecidas e anunciadas, normas que tornam possível prever, com certa segurança, como é que, em cada circunstância, a autoridade irá exercer o seu poder coercivo e permitem a cada um de nós, com base nessa previsão, planear a sua actividade (Hayek). O que caracteriza o Estado de Direito, pois, não é apenas o facto de existirem leis dotadas de universalidade (tal qualidade também pode existir num Estado Autocrático), mas o facto das leis existentes não poderem ser modificadas sem o consentimento dos cidadãos dado pelas formas prescritas na lei constitucional ... aquela lei fundamental que regula a modificação de qualquer outra lei incluindo ela mesma, como refere Eric Weil. Este mesmo autor salienta que o regime constitucional pressupõe que a comunidade seja razoável , pressupõe como condições mínimas, por parte dos cidadãos, a racionalidade do comportamento, e a submissão pelo consentimento à lei como formalmente universal, e , do lado do governo, a vontade de razão. Para Kelsen o Estado de Direito é um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica. Estado de Direito neste sentido específico é uma ordem jurídica relativamente centralizada segundo a qual a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis - isto é, às normas gerais que são estabelecidas por um parlamento eleito pelo povo, com ou sem a intervenção de um chefe de Estado que se encontra à testa do Governo -, os membros do governo são responsáveis pelos seus actos, os tribunais são independentes e certas liberdades dos cidadãos, particularmente a liberdade de crença e de consciência e a liberdade da expressão do pensamento, são garantidas Já o nosso António Ribeiro dos Santos, defendendo o modelo de liberdade política das monarquias democráticas, considerava que o mesmo era confirmado pelos princípios portugueses das cortes como estabelecimentos constitucionais, porque sem elas os reis não podiam exercitar o direito legislativo, ou fosse fazendo leis gerais e perpétuas, ou dispensando-as ou revogando-as, nem impor tributos, nem alhear os bens da Coroa, nem cunhar nova moeda, ou alterar a antiga, nem fazer a guerra, nem resolver e deliberar os outros negócios mais graves do seu Estado. E isto porque em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei. Tudo o mais é arbitrário; e do arbitrio nasce logo necessariamente o despotismo.

O Estado da vontade geral

No fundo, o Estado de Direito é aquele que tem menos a ver com a vontade de todos, aquela vontade que atende ao interesse privado e não é senão a soma de vontades particulares, e mais a ver com a vontade geral, com aquela que não atende senão ao interesse comum, conforme profetizava Rousseau. Isto é, eu só posso exigir ao Estado Aparelho que exerça um poder dever se, enquanto membro do Estado Comunidade, eu assumir a exigência é tica e cívica de me comportar de tal maneira que a máxima da minha conduta possa transformar-se em lei universal. Exprime ,pois, a tendência para ser uma sociedade perfeita, tem por objectivo a realização da democracia, económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. O nome Estado de Direito, proveniente da expressão anglo-saxónica rule of law — onde rule não é império, nem law é lei, conforme as habituais traduções que são traições —, foi utilizado a partir de finais do século XIX, nomeadamente pelo impulso do professor de Oxford A. V. Dicey (1835-1922), na obra Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de 1885, que democratizou a expressão Rechtsstaat da teoria germânica de então, considerando-o como marcado pela absence of arbitrary power on the part of government ().

Numa primeira fase, o tópico foi conceituado como simples Estado de Direito Formal, como o Estado onde haveria igualdade da lei ou igualdade de todos perante a lei. Numa segunda fase, assumiu-se de forma bem mais complexa, quando se redescobriu que o direito não podia reduzir-se à lei ou ao decreto do príncipe, mas antes a algo de mais transcendente, a Justiça.

É que, num Estado de Direito, como Estado de Justiça, já não bastaria a mera igualdade da lei, exigindo-se maior profundidade, a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei, a tal igualdade global, identificada com a justiça, que, se impõe o tratamento igual daquele que é igual, também exige o tratamento desigual daquele que é desigual, implicando, não apenas a justiça comutativa, mas também a justiça distributiva e a justiça social, isto é, as categorias aristotélicas e tomistas, que, segundo Leibniz, corresponderiam aos antiquíssimos preceitos do direito romano (praecepta juris): o alterum non laedere (o não prejudicar o outro), o suum cuique tribuere (o dar, a cada um, o seu, o dar a cada um conforme as suas necessidades) e o honeste vivere (o viver honestamente, o exigir, de cada um, conforme as suas possibilidades).

Isto é, o tópico Estado de Direito transformou-se em algo bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo.

Como refere Jacques Chevalier, o Estado de Direito, com efeito, até agora, era apanágio dos juristas, sendo objecto de um discurso de saberes apenas acessível aos iniciados (...) acontece que o Estado de Direito saiu desta penumbra protectora do campo jurídico (...) Bruscamente lançado na praça pública, tornou-se num valor em si, transformando-se numa imposição axiológica, conhecendo uma sobrecarga de signifi­cação que lhe dá uma significação totalmente nova ().

Na verdade, o conceito de Estado de Direito tem um carácter fecundante, só podendo entender-se em termos de polaridade face a um Estado de Não Direito, desde os Estados absolutistas que precederam as Revoluções Atlânticas, às experiências autoritárias e totalitárias dos nossos tempos.

Importa recordar que o núcleo essencial dos Estados Absolutistas dos Anciens Régimes era marcado por três tópicos nucleares: primeiro, que L'État c'est moi, isto é que o Estado é igual ao ponto de cúpula do sistema, ao soberano rei-sol que devia ser déspota porque se presumia esclarecido, só pela circunstância de alguns filósofos quererem que as respectivas luzes se potenciassem pelo chicote; segundo, o quod princeps placuit legis habet vigorem, aquilo que o príncipe pretende tem força de lei, o soberano está ab-solutus, solto, livre de limites, nomeadamente do direito, uma ideia bem expressa por Hobbes, para quem o soberano tem poder de fazer as leis e de as abrogar, pelo que pode, quando assim o desejar, livrar-se dessas sujeições anulando as leis que o perturbam e proclamar novas leis dado que ele já estava livre antes, porque é livre aquele que pode sê-lo quando desejar; terceiro que princeps a legibus solutus, que o príncipe, o soberano, não está sujeito à lei que ele próprio edita para os outros. Foi contra este ambiente de despotismo ministerial que o Estado de Direito do demoliberalismo contemporâneo reagiu, proclamando que o Estado de Direito, em vez de um pacto de sujeição (pactum subjectionis), face a um soberano exterior, exige um radicado pacto de união (pactum unionis), que se traduz tanto num contrato social originário, dito pacto de constituição (pactum constitutionis) como em sucessivos pactos de adesão de uma soberania popular periodicamente manifestada através de eleições livres e pluralistas, pelas quais pode mudar-se, sem a violência naturalista, o conjunto dos poderes estabelecidos. O Estado de Direito, portanto, não é um c'est lui, um soberano, situado acima ou fora da sociedade ou comunidade, a que temos de submeter-nos como súbditos, unidimensionalmente perspectivados, mas antes um c'est tout le monde, onde o Estado somos nós, todos e cada um de nós, enquanto cidadãos, enquanto aqueles que participam nas decisões, aqueles que são governados porque podem governar. Isto é, o Estado-aparelho de poder é visto como simples manifestação do Estado-comunidade. O Estado é entendido como a concórdia do princeps e da res publica, como a harmonização do Estado-governo e do Estado-comunidade, onde o próprio princeps se perspectiva como uma emanação da res publica. O Estado é, assim, a mistura da cidade do comando e da cidade da obediência. Porque, conforme os medievais restauradores da polis, eis que o reino não é para o rei, mas o rei para o reino, donde deriva o moralizante brocardo do rex eris si recte facias, do serás governante se fizeres o bem, podendo seres punido em nome do senão ... não. É que, conforme refere Blandine Barret-Kriegel, o Estado de Direito resultou de uma dupla operação: primeiro, uma juridificação da política; segundo, uma constitucio­nalização do poder. Uma operação que deu direito a uma sociedade senhorial e civilizou uma comunidade guerreira. Foi o direito contra o poder, a paz contra a guerra (). No fundo, equivale à velha expressão de Plínio, dirigindo-se a Trajano, quando aquele proclamava que inventámos um Príncipe para deixarmos de ter um dono. Para, em vez de continuarmos a obedecer a outro homem, podermos obedecer a uma abstracção. Em síntese: a tentativa de passagem de uma razão de Estado a um Estado Razão, a tentativa de transformação da política numa espécie de realização da filosofia entre os homens. Porque, o que estava antes, e o que nos ameaça sempre, é o despotismo, conforme a clássica definição de Montesquieu, essa relação de senhor/escravo, onde tudo se reduz a conciliar o governo político e civil com o governo doméstico, os oficiais do Estado com os do serralho, onde o vizir é o déspota dele próprio e cada oficial particular, o vizir (). Voltando a Blandine Barret-Kriegel, poderemos sempre dizer que o Estado de Direito foi marcado pela ideia de um poder que foi capaz de construir uma civilidade política, instituída, não sobre a guerra e o direito à conquista, mas sobre a justiça e a negociação jurídica. Um modelo fundado no direito natural e nas referências bíblicas ao Estado dos Hebreus, a uma sociedade de paz estabelecida por um contrato — em vez de uma sociedade constituída pela guerra — segundo o modelo do pacto bíblico estabelecido entre Deus e Abraão e , depois, entre Deus e Moisés Porque, como disse Fernando Pessoa, o Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado. Porque, como escreveu o nosso Manuel Rodrigues Leitão, nem tudo o que se pode é lícito, quem faz tudo o que pode , está muito perto de fazer o que não pode. Porque todo o poder num Estado de Direito é um poder-dever, um encargo, um ofício (o officium de São Tomás ou o trust de John Locke), onde o poder é potestas com auctoritas e onde o detentor do poder é servidor, servus ministerialis, um escravo do fim para que lhe foi conferido o mesmo poder; pelo que, quem abusa do poder, como quem abusa do direito, deixa de ter poder. O que caracteriza o Estado de Direito não é apenas a circunstância de existirem leis dotadas de universalidade (tal qualidade também pode existir num Estado Autocrático), mas o facto das leis existentes não poderem ser modificadas sem o consentimento dos cidadãos dado pelas formas prescritas na lei constitucional (...) aquela lei fundamental que regula a modificação de qualquer outra lei incluindo ela mesma, como refere Eric Weil (). No fundo, o Estado de Direito é aquela forma de organização do político que tem menos a ver com a vontade de todos, aquela com vontade que atende ao interesse privado e não é senão a soma de vontades particulares, e mais a ver com a vontade geral, com aquela que não atende senão ao interesse comum, conforme profetizava Rousseau. Isto é, eu só posso exigir ao Estado-aparelho que exerça um poder-dever, se, enquanto membro do Estado-comunidade, eu assumir a exigência ética e cívica de me comportar de tal maneira que a máxima da minha conduta possa transformar-se em lei universal. Neste sentido, o Estado de Direito assume-se como um processo de moralização da política, onde a moral é um limite da soberania, muito especialmente quando tem de decidir-se em estado de excepção, e onde o direito é um limite do poder. Com o Estado de Direito, parafraseando Luís Cabral de Moncada, visa-se, por um lado, que o direito sirva uma política e, por outro, que a política seja limitada por um direito (). Seguindo agora uma imagem de Alceu Amoroso Lima, importa que a política não negue o direito, evitando o espectro da tirania, e, por outro, que o direito não negue a política, impedindo que se levante o espectro da anarquia. Visa-se, em suma, o ideal democrático, esse regime que procura reunir a política e o direito no plano da ordem pública ().

Estado de Direito


(Kant). Considera que o Rechtstaat obedece a uma ideia da razão, transformada em princípio regulador da sua constituição política. Assim, é possível conciliar a liberdade e a igualdade, rejeitando-se a amarquia e o despotismo, através da cidadania enquanto autonomia, entendida como a submissão à autoridade (a ideia de ordem) que cada um dá a si mesmo (a ideia de liberdade). Essa unidade entre ordem e liberdade apenas se consegue através do direito.

Estado de Direito e Moral

No Estado de Direito procura-se uma moralização da política. Diz-se que o direito é um limite do poder, mas também que a moral é um limite da soberania, é o limite que marca o decisor em estado de excepção. O direito não é a moral, mas é uma ordem moral.

El Estado de Partidos (1986)

Manuel Garcia Pelayo assinala a existência de um novo modelo de Estado, produto da interacção de dois sistemas: o sistema jurídico-político e o sistema sócio-político dos partidos. O primeiro é um conjunto de órgãos cuja estrutura, competências e relações recíprocas são juridicamente configuradas. O segundo é composto por organizações de formação livre, concorrentes entre si. Assim, o direito é um meio ou instrumento da política no sentido em que é via para a transformação das formulações programáticas dos partidos em normas vinculadoreas e estruturadores da sociedade e do Estado. É também um produto da política

Estado Nacional

Aguiar, Joaquim, «Para além do Estado nacional. Da crise política à crise dos conceitos», in Revista Análise Social, vol. XXVII, pp. 118-119, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1992.

Albertini, Mario, Lo Stato Nazionale, Milão, Giuffrè Editori, 1960 [trad. fr. L’État National, Lyon, Federop, 1978].

Burgi, Noelle, ed., Fractures de l’État-Nation, pp. 205 segs., Paris, Éditions Kimé, 1994.

Kaplan, Morton A., Formacion del Estado Nacional en América Latina, Buenos Aires, Ediciones Amorrortu, 1976.

Sabourin, Paul, L’État-Nation face aux Europes, Paris, Presses Universitaires de France, 1994.

Retirado de Respublica, JAM

REGIME POLÍTICO

1. Expressões equivalentes
2. Regime político e formas de Estado
3. Definições do Estado pela primazia do elemento estruturante do respectivo regime
4. O poder político nos conceitos de regime e sistema
5. Limites operacionais dos conceitos de regime e sistema
6. A distância entre o proclamado e a realidade dos regimes
7. Tipologias dos regimes políticos
8. O desenvolvimento da perspectiva sociológica

1. As expressões Estado, sistema político e regime político aparecem por vezes usadas como sinónimos, diferenciando-se pela caracterização ideológica acrescentada: so­cialista, liberal, comunista, teocrática, de­mocrata, totalitária. Existem todavia ques­tões que exigem uma definição operacio­nal dos conceitos que os autonomiza, as quais dizem respeito à própria identifica­ção do objecto da ciência política e, por­tanto, ao âmbito do fenómeno político.

2. O fenómeno essencial do Estado, na ob­servação que se confirma desde Trasímaco, na República de Platão, até às inves­tigações sucessivas de Schaefle, Max Weber, Caetano Mosca, Heller, Thomas I. Cook, Catlin, Lasswell, Morgenthau e Raymond Aron, é o Poder e, portanto, como sintetizou Duguit, uma diferencia­ção entre fortes e fracos, entre os que man­dam e os que obedecem. Acontece que este fenómeno permanente não se mani­festa apenas na organização social que em determinado período histórico foi cha­mada Estado, porque designadamente foram realidades diferentes, com igual caracterização, a Polis na Grécia, o Imperium em Roma, a civitas christiana me­dieval. Por isso o Estado é uma espécie do género organização política das sociedades, e esta, de acordo com aquilo que Zubiri chama o fenómeno da homologia, tem ou procura um território, abrange uma po­pulação e produz um poder, variando na definição do sistema político e do R. P. O Estado é uma forma de organização política ocidental, que se desenvolveu na Europa a partir do séc. xiii até ao fim do séc. xix e que tem como características es­pecíficas, em relação às formas anteriores, a passagem do senhorio territorial para a soberania territorial, a alteração da relação entre o poder espiritual e o poder político que a Igreja introduzira para firmar a su­premacia do primeiro, o primado da polí­tica no sentido de organizar e satisfazer as necessidades terrenas da comunidade, a progressiva despersonalização do co­mando pela evolução do conceito de officium e, finalmente, como escreveu Max Weber, a acentuação do «monopólio da força legítima», que receberia a designação de soberania.

3. As definições do Estado, que atendem apenas aos elementos estruturais e permanentes de qualquer das formas de organização política das sociedades, usam colocar o acento tónico num dos elemen­tos:
a) «o Estado somos nós», disse Kelsen ao definir a democracia como o governo do povo pelo povo; «o Estado é a forma viva do povo... É o próprio povo», disse Herber na orientação do nacional-socialismo;
b) evidenciando a perma­nente diferenciação entre governantes e governados, o Estado é visto como a sede do governo efectivo: «nous avons vu que tout l'Êtat est en Ia personne du prince» (Bossuet); «L'État c'est moi» (Luís XIV); o dominador soberano confunde-se com o Estado, concluiu Bornhak;
c) embora desde Bodin a Kant as definições do Es­tado não dêem primazia ao território sobre o qual a comunidade existe, deve re­cordar-se com Jellinek que a teoria patri­monial da Idade Média atendia sobretudo ao território e fazia derivar o poder político da propriedade do solo;
d) o poder político caracteriza outra linha de definições desde Bodin, para o qual o Estado é um certo governo de vários grupos e do que lhes é comum, usando um poder soberano, pers­pectiva que informa toda a obra de Jouvenel.

4. É em relação com o elemento poder polí­tico que aparece em todos os tipos de orga­nizações políticas das sociedades, que se perfilam os conceitos de sistema político e de R. P. A utilização actual do conceito mais vasto de organização política é im­posta porque o próprio Estado, depois do seu aparecimento, sofreu variações consi­deráveis, sobretudo a partir do séc. xix, e o fenómeno da luta pela aquisição, manu­tenção e exercício do poder político ex­cede, externa e internamente, os quadros organizacionais desse poder: apareceu um feudalismo interior dos poderes de facto no mundo do trabalho, das empresas, das ideologias, dos partidos, das internacionais políticas; estruturam-se dependências e solidariedades externas na defesa, na eco­nomia, na ciência, na cultura, na política, que afectam os conteúdos e definições da soberania, e a função do aparelho que a exerce.

5. A primeira necessidade de limitar operacionalmente os conceitos de sistema político e R. P. decorre da verificação de que o Estado, entendido como aparelho do poder, não coincide necessariamente com o sistema político integral, nem in­terna nem externamente, porque os contrapoderes internos têm de ser considera­dos e porque frequentemente se articula com uma organização política que o ex­cede internacionalmente, mesmo sem o consentimento da soberania. A noção teórica de sistema é, nesta área da ciência política, a mesma utilizada nas ou­tras áreas das ciências sociais: um conjunto de elementos com identidade própria, in­terdependentes por um feixe de relações e que se perfilam dentro de uma fronteira. Uma corrente de inputs (apoios e exigên­cias) e outputs (decisões) estabelece a rela­ção do sistema com o ambiente em que se inscrevem outras organizações políticas e a comunidade internacional no seu conjunto. O sistema pode ser considerado em dois planos: uma hipótese interpretativa (sistema observante), como acontece com o sistema marxista teórico; o conjunto das efectivas relações de interdependências vi­gentes, dentro de uma situação concreta, e que constituem um sistema específico (sis­tema observado). No mundo actual, o sis­tema político observado abrange frequen­temente elementos exteriores ao Estado, de modo que a fronteira do sistema não coincide sempre com a fronteira do Es­tado. A forma como os vários elementos do sistema interactuam, definindo um status e desempenhando funções que produ­zem resultados finais ou decisões, dá vida a vários tipos de regência dos sistemas, que devemos chamar regimes políticos porque é um fenómeno da luta pela aquisição, ma­nutenção e uso do Poder que constitui o elemento dinâmico do sistema, e é para impor uma forma de regência do sistema que se ocupa o Poder, fazendo com ele variar as relações. Justamente porque a questão do poder de reger o sistema é cen­tral, a definição do regime exprime-se num normativismo que visa disciplinar as rela­ções entre os elementos do sistema, e esse normativismo nunca é exclusivamente de meios-fins, não é na totalidade eticamente neutral, tem apoios e contestações internos e externos, decorrentes das diferentes es­calas de valores, objectivos, interesses, concepções do mundo e da vida que se colocam desafiantes perante as opções da totalidade dos homens e das instituições que constituem a organização política. O facto de o sistema político exceder hoje, frequentemente, o Estado, entendido como aparelho do poder soberano, tem consequências na qualificação deste na co­munidade internacional, umas vezes sem expressão jurídica, outras com ela: as de­signações de superpotência, grande potên­cia, média potência ou Estado exíguo cor­respondem ao primeiro caso; as designa­ções de Estado vassalo ou Estado prote­gido corresponderam ao segundo, mas, se os estatutos jurídicos caducaram, os factos produziram realidades equivalentes, como os satélites.
O R. P. pode, portanto, não abranger a regência de todo o sistema, nem interna nem externamente, e os elementos que ficam subtraídos a tal regência repre­sentam, no ambiente decisório do poder político, limitações que fazem com que as expressões «Estado», «soberania» e «po­der político» não tenham o mesmo con­teúdo para todos os regimes observáveis e formalmente equivalentes, designada­mente possuindo Constituições escritas coincidentes. Por outro lado, as disfunções possíveis do sistema, resultantes da varia­ção das maiorias, ou do recurso à força, como as greves, os golpes de Estado, as revoluções, as ameaças ou pressões e agressões externas, implicam que, na luta pela aquisição, manutenção e uso do poder político, tenham de aparecer concepções diferentes sobre a pilotagem e funciona­mento do sistema, com expressões norma­tivas, valorativamente comprometidas, que entendem impor uma forma de regên­cia do sistema e não outra, o que necessa­riamente exige uma definição dos vários status e função dos elementos componen­tes, vistos de uma perspectiva conserva­dora, reaccionária, reformista ou revolu­cionária. Por isso a força é inerente ao po­der político e o R. P. se traduz, no dizer de Jiménez de Parga, «na solução que se dá de facto aos problemas políticos de um povo». Estas circunstâncias fazem com que o sistema político e o R. P. possam não coincidir, na medida em que o segundo, embora proclamado, e modernamente com expressão numa Constituição, pode não ter assumido a efectiva regência do sis­tema ou da sua totalidade. A guerra civil duradoura, que caracteriza muitos Estados actuais, corresponde a esse facto.

6. Haverá então, eventualmente, um fenómeno de falta de autenticidade medida pela distân­cia entre o proclamado e a realidade; tam­bém acontece que o R. P. proclamado é intencional e puramente semântico, é ver­bal e para fins de imagem, porque o regime real é outro. Quando um regime se procla­ma democrático e redige uma Constitui­ção semanticamente correspondente à ma­triz invocada, mas vive dezenas de anos em ditadura de partido único, o R. P. real não é o invocado. Quando um regime se proclama socialista, mas vive em economia de mercado paralela às leis, a falta de au­tenticidade é evidente. O normal, porém, é que o regime proclamado corresponda à espécie de voluntarismo que pretende re­ger o sistema, e por isso as definições dos regimes políticos não omitem tal perspectiva. Assim, o Dizionario di Política fas­cista (Roma, 1940, vol. iv, pp. 31-35) dis­tinguia três elementos no regime: a) o capo e a classe política; b) a. massa; c) a. fórmula. Isto correspondia à famosa definição de Chiarelli: «um complexo de instituições coordenadas no sentido do desenvolvi­mento de uma determinada concepção do Estado e da sociedade». Não é realmente diferente a formulação que vem da área democrática. Assim, Burdeau escreve que «um regime político é o estado de equilí­brio em que se fixa num momento dado uma sociedade estática e que se caracteriza pelas soluções que adopta quanto à fonte, objecto e modo de estabelecimento do direito positivo». Para Duverger, «um conjunto de instituições políticas funcio­nando em determinado país, em certo mo­mento, constitui um regime político». Em qualquer dos tipos se encontra sempre uma referência ideológica (liberal, socia­lista, comunista, fascista, terceiro--mundista); um modo concreto de organi­zação (Estado unitário, regional, federal) em que têm especial relevo as estruturas, função e objectivos dos partidos políticos, e uma visão da estrutura social. As exigên­cias principais de método estão em consi­derar no conceito de regime apenas o Es­tado como aparelho do poder definido, p. ex., numa Constituição, e no de sistema a estrutura política integral, incluindo, v. g., os partidos proibidos, os poderes de facto ou externos e os contrapoderes, sendo que esta última perspectiva é mais abrangente, tendo em vista os fenómenos da falta de autenticidade e a variação de conteúdo daquela realidade básica. O R. P. traduz-se assim no conjunto de institui­ções, nem sempre com expressão norma­tiva e nem sempre legais, que regulam a luta pela conquista e exercício do poder de reger o sistema em função dos valores ideológicos que animam as instituições participantes.

7. Vimos que os sistemas políticos homólo­gos têm mais de uma alternativa no que respeita ao R. P., sobretudo no que toca à estrutura organizativa do poder político, que assegura a selecção da classe política em exercício, os status e função dos com­ponentes desta, utilizando processos desti­nados a garantir a regularidade dos com­portamentos em função dos valores ou concepções de vida adoptados. Trata-se portanto de condicionar a formação da vontade política e os regimes são objecto de uma tipologia que é plural em função do critério adoptado. A mais antiga ti­pologia foi herdada de Aristóteles, que atendia apenas à estrutura organizativa e distinguia entre: a) monarquia, ou go­verno por um só; b) aristocracia, ou go­verno por alguns; c) democracia, ou go­verno por todos. Dava por assente que a concepção fundamental da vida era co­mum aos intervenientes no processo polí­tico, e o interesse geral o objectivo do po­der, considerando que cada uma das for­mas tinha um equivalente degenerado quando aqueles pressupostos eram aban­donados pelos governantes: a tirania, a oligarquia e a demagogia. A teoria das elites, entre outras, que sustenta que o Poder, mesmo na chamada monarquia, acaba sempre por pertencer a um pequeno grupo, seja qual for o regime, reduziu a tipologia a puramente formal. Daqui re­sulta a importância que assumiu a perspec­tiva já sociológica de Montesquieu, que distinguia entre república, monarquia e despotismo, atendendo à combinação de dois critérios: a natureza e o princípio do governo. A primeira atende ao número de detentores do Poder (todos na república, e apenas um na monarquia e no despotismo) e à forma de exercício (a república e o mo­narca estão submetidos a leis, o déspota usa o arbítrio); o princípio do governo, correspondente ao que hoje chamamos valores orientadores, tem que ver com a teoria da obediência, e conclui que a repú­blica assenta na virtude, a monarquia na honra e o despotismo no medo, pelo que se pode entender que este engloba a ge­neralidade dos regimes degenerados de Aristóteles.

8. O desenvolvimento da pers­pectiva sociológica conduziu a relacionar os tipos dos regimes com as diversas for­mas de luta para adquirir e manter o poder político e estas com o condicionalismo so­cial e político, interno e internacional, em que essa luta se desenvolve, tendo essa perspectiva a sua expressão mais saliente em duas orientações: o materialismo histórico e a razão de Estado. A primeira faz depender o tipo de R. P. da evolução do modo de produção e assim tipifica a democracia apenas dos homens livres na cidade-Estado, o despotismo oriental, o feudalismo, a democracia representativa burguesa, o socialismo proletário. As críti­cas a este critério, que, sendo embora de fundamentação variada, todas podem reu­nir-se na perspectiva geral da razão de Es­tado, não ignoram a importância do sis­tema de produção e do acesso à distribui­ção da riqueza, mas sustentam que outros factores, incluindo o sistema cultural, os fins da comunidade e seu condiciona­mento, e designadamente o papel do Es­tado na vida internacional, estão incluídos na explicação do tipo de regime adoptado. P. ex., a estrutura organizativa do Poder na Inglaterra, caracterizada pelo autogo­verno local e pelas liberdades públicas, tem relação com a insularidade que dispensava a centralização e o militarismo para que foram conduzidos, por razões internacio­nais, os poderes continentais, como a França, a Espanha ou a Alemanha. Os no­vos Estados, nascidos da descolonização moderna, assumem tipos autoritários de regime, entre outras razões que decorrem da falta de identidade nacional das popula­ções e do seu pluralismo étnico e cultural, porque um só grupo (partido armado, for­ças militares, grupo étnico) assume o Poder e o objectivo da unidade, e esse grupo não teria, mesmo que o pretendesse, recursos humanos para responder às exigências de um regime baseado na divisão de poderes. Daqui uma relação entre o subdesenvolvi­mento e a concentração do Poder (regimes de partido único, poder pessoal e autori­tarismo) e entre as sociedades afluentes e a descentralização e desconcentração de po­deres (federação, estados regionalizados, poder local, instituições, partidos). Pressu­pondo que existe e pode ser graduado o desenvolvimento político, tendo como pa­drão de referência as democracias ociden­tais (especialmente os E. U. A., a Inglater­ra e a França) aparecem as tipologias desenvolvimentistas, a mais célebre das quais é a que Edward Shils apresentou em 1950 ao Commitee on Comparative Politics: a) democracias políticas — diferenciação de funções e especialização das estruturas (órgãos legislativos, executivos e judiciais, partidos políticos, grupos de interesses, ór­gãos de informação); b) democracias tu­telares — concentração do Poder no Exe­cutivo, apagamento do poder legislativo, dependência do poder judiciário, falta de alternância, tudo com o proclamado ob­jectivo de conduzir o regime para a demo­cracia política; c) oligarquias modernizantes — não existe forma constitucional nem alternância no Poder, o regime é ditatorial e o seu objectivo proclamado o desenvol­vimento económico; d) oligarquias totali­tárias, de partido único, ou chefia perso­nalizada, sem alternância e com imposição de uniformidade ideológica, que compre­endem os regimes soviéticos das várias tendências e os extintos fascismo italiano e nazismo alemão; e) oligarquias tradicio­nais — a elite dirigente recruta-se na base do parentesco e do status, têm geralmente forma dinástica e apoiam-se no costume mais do que em qualquer constituição racional-normativa.
Outros autores, como Gabriel Almond e Birgham Powell, intro­duziram variações na tipologia sem aban­donar o critério. Partindo da teoria da obediência, a qual procura determinar as razões pelas quais a regência do sistema é acatada com esporádica intervenção da força, aparecem dois grandes tipos: demo­cracias e monocracias. As democracias são regimes que se orientam pelo objectivo de estabelecer juridicamente a «técnica da li­berdade» individual, de modo que o Poder se baseará no consentimento de todos, fi­cando as maiorias obrigadas a respeitar os direitos das minorias, e assegurada a alter­nância no exercício do Poder. As «técnicas da liberdade» conduzem a uma tipologia constitucional, falando-se em regimes pre­sidencialistas, de assembleia, parlamen­tares ou dualistas, variantes orientadas pela mesma concepção de vida cujo principal texto são as Declarações de Direitos do Homem. A concepção dos Direitos do Homem inspira uma tipologia que se ori­enta pela distinção entre garantia das liber­dades formais (democracia clássica) e efec­tivação dos direitos sociais (democracia progressiva). Nos regimes monocráticos é eliminada a necessidade do consentimento de todos como condição de legitimidade do Poder e da obediência voluntária, ex­clui-se a alternância e, em vez da vontade da maioria, fala-se nos interesses da maio­ria (sovietismo) ou nos interesses maiores (nacionalismo) como fonte de legitimi­dade. A monocracia pode ter sede num chefe (regime de poder personalizado, como no III Reich), num partido único (sovietismo, fascismo), nas forças armadas (terceiro-mundismo), numa instituição (teocracia iraniana). Quando a monocracia impõe uma concepção ideológica, fala-se de totalitarismo e, quando apenas propõe tal concepção, fala-se de autoritarismo, embora a diferença de teses não conduza sempre a hipóteses diferenciáveis.

Artigo do Prof. Doutor Adriano J. A. Moreira, retirado da Enciclopédia POLIS (vol. 5, col.s 141-150) e adaptado para fins didácticos.
Regime político
Segundo Adriano Moreira é a solução que uma comunidade adopta para a sua convivência política, para a expressão política de uma dada constituição material, detectando-se a organização do poder político, o estilo de aplicação dos direitos fundamentais e a forma de organização económica e social.
Para Marcel Prélot, o conjunto ligado e coordenado das instituiçóes concretas de um país, em determinado momento.
Para Lucio Levi é o conjunto das instituições que regulam a luta pelo poder e o seu exercício, bem como a prática dos valores que animam tais instituições.
De acordo com o funcionalismo e o sistemismo, o regime político é o sistema de organização e funcionamento de uma entidade colectiva politicamente organizada, para utilizarmos as palavras de C. Bergeron. Já para David Easton é o conjunto dos constrangimentos que pesam sobre a interacção política, incluindo três elementos: os valores (os fins e os princípios); as normas; e as estruturas da autoridade.

No estudo dos regimes políticos, entendidos como forma de governo ou forma de poder, interessa tanto saber da forma, procurando dar resposta ao quem manda? Ou quem governa? Como fazer uma interrogação sobre o como se governa? Isto é, interessa tanto estudar a forma como o estilo.

L'Estat da République
O conceito de regime político aproxima-se daquilo que Jean Bodin qualifica como l'Estat, por oposição a République. Podemos dizer que se os governos passam e o regime permanece, também os regimes políticos mudam e o Estado permanece.

Classificação
— Da tricotomia clássica à perspectiva dicotómica demoliberal (confronto entre governos controlados e governos não moderados).
— A proposta de Eric Weil: monocracia/divisão de poderes.
— A proposta de Raymond Aron: governo autocrático/governo constitucional.
— As propostas de Adriano Moreira: regimes monistas/regimes pluralistas e regimes monocráticos/regimes democráticos.
— A classificação de Edward Shils: political democracies; tutelary democracies; modernizing oligarchies; totalitarian oligarchies e traditional oligarchies.
— A classificação de Gabriel Almond (1963): traditional systems; modernizing authoritarian systems; tutelary democracies; immobilist democracies; conservative authoritarian systems; totalitarian systems; stables democracies. A classificação de Gabriel Almond e Bingham Powell, segundo o grau de diferenciação estrutural e de secularização cultural: sistemas primitivos (estruturas políticas intermitentes); sistemas tradicionais (estruturas governamentais diferenciadas, incluindo sistemas patrimoniais, sistemas burocráticos centralizados e sistemas políticos feudais); sistemas modernos (estruturas políticas diferenciadas). Modelos de sistemas modernos: cidades-Estados secularizadas; sistemas modernos mobilizados (sistemas democráticos e sistemas autoritários); sistemas modernos pré-mobilizados (sistemas autoritários e sistemas democráticos).
– A classificação de David E. Apter: sistema de mobilização pela coerção sagrado-colectivista; sistema teocrático; sistema da autocracia modernizante; sistema secular-libertário pela informação e pelo mercado. A competição como aspecto essencial da modernidade política.
–A classificação de Morris Janowitz: sistema de controlo autoritário-pessoal; sistema de partido autoritário de massas; sistem democrático competitivo e semi-competitivo; coligação cívico-militar e oligarquia militar.
-A classificação de Robert Dahl : hegemonia abrangente; hegemonia fechada; oligarquia competitiva; democracia de massa. Guelli, Vincenzo, O Regime Político, trad. port., Coimbra, Livraria Arménio Amado, 1951. Krasner, Stephen D., International Regimes, Ithaca, Cornell University Press, 1983.

Regime político moderno
Segundo Adhemar Esmein, equivale ao modelo democrático constitucional.

Retirado de
Respublica, JAM