segunda-feira, 16 de julho de 2007

Populismo Russo

Neste ambiente eslavófilo, destacou-se, no último quartel do século XIX, o chamado populismo, defensor de uma espécie de socialismo agrário. Um desenvolvimento doutrinário que, na senda de Herzen, defendia a passagem do tradicional mir ao socialismo, queimando-se a etapa da fase capitalista. Os populistas, ditos norodniki em russo, assumem-se como os defensores do narodnichestevo, nome dado pelos historiadores ao grupo. A tendência manifesta-se particularmente a partir de 1874 quando se deu a chamada peregrinação ao povo levada a cabo pelos cavalheiros das cidades que se assumiram como autênticos missionários. Era o delírio pelo povo como objecto distante, numa reedição pré-ecológica de uma espécie de primitivos actuais, por parte da intelligentzia russa. Com efeito, há na Rússia uma ideia de povo portador de um destino quase divino, que se revela no milenarismo pan-eslavista e que vai ser continuada pelos bolcheviques, onde o proletariado se asume como o reino dos pobres a quem a terra é prometida. Aliás, o terrorismo dos nihilistas talvez apenas tivesse a ilusão de ser um choque para fazer sair o povo da apatia. Como afirma Jean Servier: em 1905 como em 1917, a Revolução russa recordar-se-á de Bakunine e da sua mística revolucionária, porque trouxe ao socialismo doutrinário um élan messiânico novo, a noção que um povo eleito devia ser o portador da revolução na Europa. Neste sincretismo, destaca-se a obra do príncipe Piotr Kropotkine (1842-1920), onde é marcante a influência de Proudhon. Trata-se de um anarquismo que se volta fundamentalmente contra o centralismo tentando delinear uma espécie de anarcocomunalismo. Como ele confessava, na Sibéria perdi toda a fé na disciplina do Estado. Assume-se contra o livre-cambismo, que terá dividido a humanidade em fábricas nacionais, cada uma com a sua especialidade, saudando a nova corrente que leva as nações civilizadas a ensaiar no seu interior todas as indústrias e a encontrar vantagens em fabricar tudo o que dantes recebiam dos restantes países. Insurge-se também contra o darwinismo, que tão marcantemente influenciou o marxismo russo, criticando especialmente a teoria da luta pela vida, apelando, em alternativa, à cooperação e ao autogoverno da solidariedade espontânea. Tendo regressado em 1917 à Rússia, depois de saudar Kerenski, acaba por criticar acerbamente os bolcheviques. Veja-se a Carta aos Operários de Todo o Mundo, onde, dirigindo-se a Lenine, observa: por mais que me esforce, não posso compreender que nenhum dos homens que o rodeiam lhe tenha dito que as decisões que estão a ser tomadas, lembram os tempos obscuros da Idade Média e das cruzadas. Se tais métodos são agora tolerados, não nos será difícil pensar que um dia, não muito distante, será usada a tortura como na Idade Média. Também nestes finais do século XIX importa destacar o labor do eslavófilo de esquerda Vladimir Soloviev (1853-1900), autor de A Grande Controvérsia e a Política Cristã, de 1883, onde defende que a Rússia deve mostrar que não representa somente o Oriente, mas que é na realidade a Terceira Roma, a qual não exclui a primeira, antes reconcilia as duas. Assim, critica o anterior erro de Pedro, Grande, de ter transformado a Rússia num puro reino ocidental, denunciando também o anti-semitismo dominante no czarado de Alexandre III. Em A Questão Nacional na Rússia vai distinguir nacionalismo e nacionalidade, criticando o primeiro por conduzir ao egoísmo nacional. Para ele, a eslavofilia conduziu não à ideia cristã, mas a um patriotismo ideológico que faz da nação um objecto de idolatria, através daquilo que designa por filosofia mecanicista. Contudo, em 1896 converteu-se ao catolicismo e publicou Trois Entretiens e Récit sur l'Antichrist. Depois dele, Viatcheslav Ivanov (1866-1949) no ensaio A Ideia Russa, de 1907, analisa o contraste entre o povo e a intelligentzia e fala na ideia da Terceira Roma como o sonho da missão universal do povo russo. Nikolai Fiudorov é um dos últimos expoentes desta eslavofilia, onde o apocaliptismo é levado ao extremo, prevendo-se um próximo fim dos tempos, com a chegada do Anti-Cristo. Mas o julgamento final não seria fatal dado que os homens poderiam unir-se numa causa comum, a da ressurreição, capaz de vencer a natureza, organizar a vida cósmica, ultrapassar a morte e ressuscitar os cadáveres. Adepto da ligação da teoria à prática, odiava o capitalismo e propunha que os homens deveriam deixar de combater entre eles para combaterem em comum contra as forças elementares da natureza. Estas teses tiveram um certo acolhimento por algumas alas bolcheviques e, de certa maneira, estão presentes nas teologias da revolução que também pretendem fazer uma simbiose entre o cristianismo e a revolução marxista, não desdenhando da violência terrorista, como acontece na América Latina contemporânea. Numa posição contrária a este ciclo do pensamento russo, o padre jesuíta russo Ivan S. Gagrine, tradutor de Tchaadaev para francês, em La Russie sera-t-elle catholique?, de 1856, atacava os eslavófilos por quererem estabelecer a mais completa uniformidade religiosa, política e nacional, dado que na sua política exterior, querem fundir todos os cristãos ortodoxos, de qualquer nacionalidade, e todos os eslavos de qualquer nacionalidade, num grande império eslavo e ortodoxo. Por seu lado, Besançon, fiel ao cepticismo racionalista francês, considera que os eslavófilos tiveram de importar o nacionalismo, apagando as etiquetas de importação. E nacionalizar o nacionalismo alemão, a tal ponto que este pareça jorrar das profundidades da nação russa, como uma formação indígena, portadora de valor. Como o nacionalismo se posiciona, opondo-se, é necessário poder opor a Rússia à Alemanha e ao Ocidente europeu, servindo-se dos argumentos alemães e ocidentais, mas virados contra o ocidente, e sem fazer qualquer referência à sua fonte real. O que falta absolutamente aos eslavófilos são as referências e as citações. Para o mesmo autor, o eslavofilismo alimenta-se de uma má consciência interna à Europa, que esta contempla projectada no muro russo, enquanto a Rússia não a atira para a Europa, a não ser na medida em que foi conquistada por essa má consciência e, nessa medida, europeizada. Daí que a visão eslavófila da Europa seduza facilmente a Rússia e seduza também a Europa, ela própria totalmente disposta a tomar a sério o persa moscovita e o hurão a quem ensina, em Paris ou Gotinga, os rudimentos da filosofia. Acontece apenas que o eslavofilismo, tendo-se tornado teologia, eis que conserva o carácter de seita e de seita dualista, com os seus ódios e as suas exclusões. A cristandade russa, em que entrou, o eslavofilismo fá-la gritar, como uma massa de calceteiro, contra os seus inimigos particulares: a verdadeira herança do eslavofilismo não é de valores, mas de contra-valores, entre os quais enumera, o desprezo pelo direito como contrato, o desprezo pelo liberalismo, o desprezo pelo ocidente, o horror pelo capitalismo.

Retirado de Respublica, JAM