Imanência
A crença, segundo a qual, por dentro das coisas é que as coisas realmente são e que pode chegar-se ao transcendente através da imanência, havendo uma espécie de transcendente situado. Há um imanentismo de raiz aristotélica, desenvolvido pelo estoicismo greco-romano, pelo tomismo e pela neo-escolástica peninsular que certo jusracionalismo humanitarista semeou no chamado krausismo peninsular do século XIX, onde, pela via do intelectualismo maçónico, Wolff pôde reconciliar-se com Leão XIII. E que, hoje, continua a ser cultivado pelo movimento de regresso ao direito natural e pelos seguidores do princípio da autonomia dos sistemas complexos. Aristóteles considera que nas coisas haveria uma natureza, isto é uma ordem imanente à realidade, donde poderia extrair-se o necessário elemento de transcendente. Exacerbando todo o processo jusracionalista, Kant transforma o direito natural numa coisa que é imanente ao homem, em algo que é por ele querido e criado, deixando de ser um transcendente, enquanto alguma coisa exterior que lhe era imposta. Deu-se a procura de uma imanência que substituiria transcendência impositiva do anterior direito natural, onde procurava extrair-se da natureza, enquanto algo que era anterior e exterior ao homem, uma ordem da conduta humana. Com Hegel, a ideia de Platão passa a imanência nas coisas, superando-se a razão abstracta do iluminismo, também ela transcendente. Porque o próprio homem não pensa. É o espírito que pensa através dele. O espírito do mundo, a ideia, o logos – equivalente à inteligência divina dos escolásticos –, torna‑se objecto para si mesmo, através de nós. Com Hegel, atinge-se, assim, aquilo que será vulgarizado como historicismo, onde o homem é o personagem de uma liberdade, ideal ou social que se desenvolve objectiva e universalmente, segundo leis racionais, imanentes na história, conforme observa Miguel Reale. Trata-se, aliás, de um panteísmo imanentista onde Deus se confunde com o mundo e onde o direito é a expressão do que está imanente ao mundo, conforme Carl Schmitt. Ahrens, o divulgador do krausismo, obedecendo à tríade unidade, variedade, harmonia, defende o chamado panenteísmo ou realismo harmónico, onde, ao contrário do panteísmo, que confundia Deus com o mundo, se advoga a existência de um ser que é ao mesmo tempo, imanente e transcendente, uma espécie de Deus que apenas não está separado do mundo. Mantendo o hegelianismo, a Escola Histórica de Savigny gera a crença na imanência de um sentido criador nas manifestações históricas, correspondendo ao historicismo romântico de cariz conservador, bem diverso do historicismo hegeliano-marxista, dialéctico-crítico. Julius Binder (1870-1939), professor em Gotinga, autor de uma Philosophie des Rechts, de 1925, considera que a ideia tanto é um princípio transcendental da consciência, como um princípio imanente do existente. Porque, para além da realidade física e da realidade psíquica, existe um terceiro reino do real, o reino do espiritual, das significações, ao qual pertence o direito. Husserl considera que essência não é um conceito genérico obtido pela indução (v. g. o que é comum a uma pluralidade de factos), mas algo que é anterior à experiência e imanente aos objectos. As essências não se inventam nem se deduzem: vêem‑se e contemplam‑se, são dados, coisas que podem descrever-se através da fenomenologia, entendida como simples ciência descritiva dessas mesmas essências. Porque anteriores à experiência, são imanentes aos objectos, porque cada objecto possui uma ideia, um valor ou um conceito que a nossa consciência apreende. Também as famílias institucionalistas, adoptando uma concepção estruturalista do mundo e da vida, consideram que a realidade humano-social não é restrita aos meros factos, antes traduz certos valores, certos sentidos, constituindo uma realidade pré-ordenada, que tem imanente uma ordem específica. Neste sentido, o ser social tem, dentro de si, o próprio dever-ser. Isto é, ao mesmo ser social pertence a uma ordem de valor ou, pelo menos, detém uma certa ordem de organização. Assim, concluem que cada comunidade que, na história, conseguiu adquirir uma certa individualidade possui, ontologicamente, tanto uma unidade de espírito, como uma ordem imanente. Uma comunidade não é, portanto, mera facticidade sociológica e psicológica, mas uma plenitude, dotada de uma determinada realidade de sentido. É um todo, mas um todo unitário e ordenado, bem diverso do mero caos, da facticidade. Neste sentido, o direito não passa de uma manifestação externa dessa íntima ordenação das comunidades reais, assumindo-se como algo segregado pela ordem imanente e constitutiva das comunidades políticas, oferecendo-se em ordens vitais, cada uma delas produzindo a sua ordem concreta.