Ensaio sobre o Problema do Estado, 1990
Foi esta a linha de força da nossa dissertação de doutoramento de 1990, Ensaio sobre o Problema do Estado, onde, depois de abordarmos o percurso que vai da aldeia à república universal, inventariámos as tentativas de superação da razão de Estado pelo Estado-razão. Continua a ser este o alento que nos leva a aderir àquele europeísmo que não ofende a autonomia das nações, entendidas mais como povos do que como Estados. Julgamos pertencer àquele grupo de pensamento político que não considera o Estado soberano como o fim da história do político. Com esse já antiquado Estado moderno, consolidado com o absolutismo, que pratica o culto da religião secular do soberanismo, dizendo que um qualquer centro político tanto deve ter uma soberania externa, a puissance absolue et perpétuelle d'une république, conforme as teses de Jean Bodin, implicando a definição de fronteiras e a definição de nacionalidade, como uma soberania interna, o poder absoluto de um soberano já dentro de uma república, conforme o ideologismo leviatânico de Thomas Hobbes, implicando o ius tractum, o ius legationis, o ius iurisdictionis e o ius bellum. Como Francisco Vitória, consideramos que o Estado como sociedade perfeita é a comunidade que não é parcela de outra comunidade, mas que dispõe de leis próprias, de um conselho próprio e de autoridades suas (). É uma comunidade perfeita e integral. Por conseguinte, não está submetida a nenhum poder exterior, pois, neste caso, não seria integral (). Da mesma maneira, na senda de Vasquez de Menchaca, aceitamos um ius maiestatis, reconhecendo que a razão e a natureza condicionam o poder ao serviço da comunidade, pelo que aquele não é absoluto face ao direito, nem ilimitado, constituindo mero poder preeminente e universal, para dispor de tudo quanto conduza à conservação e saúde da alma e do corpo da república. Consideramos assim como Francisco Suarez, que há um poder supremo, uma suprema potestas, em cada república, um poder que não reconhece acima de si nenhum poder humano da mesma ordem ou da mesma natureza, isto é, que prossiga o mesmo fim. Um poder que, contudo, não se confunde com o dominium, devendo entender-se como um officium, dado que apenas existe por causa do regnum e não do rex (). Isto é, não admitimos a existência de um poder supremo, de natureza diferente dos restantes poderes que lhe estão por baixo, de um tipo de poder que, a si mesmo, se decreta como fonte de todos os poderes, como detentor de uma competência das competências, e como insusceptível de limitação pela moral e pelo direito. Foi assim que surgiu a soberania dita una, inalienável, indivisível e imprescritível. Com efeito, consideramos que entre um agrupamento de homens nos limites de um Estado e o agrupamento de homens na totalidade do planeta não há diferença de natureza, mas apenas de extensão. Da mesma maneira, sufragamos a ideia de que, entre o Estado e outras formas políticas ditas infra-estaduais, há mais distâncias de quantidade do que de qualidade. Sentimos por isso algumas reais afinidades com todos aqueles que, depois do holocausto e dos gulags, apelaram às profundidades do libertacionismo cidadanista e à consequente autodeterminação da polis, entendida como autonomia de autonomias, onde a pedra viva da construção é o indiviso do cidadão-homem livre, esse tal ser que nunca se repete. Essa polis que é sempre comunhão de cidadãos em torno das coisas que se amam e, onde, por sua vez, o cidadão é aquele que participa na decisão, aquele que dá o consentimento, isto é, o exacto contrário do mero súbdito de um soberano, do escravo de um dono ou da parcela fungível de um todo, seja ele uma nação, um Estado ou a própria humanidade. Não podemos, pois, deixar de comungar com todos aqueles que, reagindo contra o absolutismo, tentaram, pela via consensualista, institucionalizar formas de controlo do poder, estabelecendo travões ao mecanismo autofágico do Leviatã soberanista. Porque no soberanismo absolutista, o poder supremo não só não admite o controlo fáctico, da divisão e separação de poderes, como o próprio controlo normativo, nomeadamente pela não admissão do conceito de abuso do poder, esse poder supremo que, em nome de um terrorismo da razão, foi a fonte primordial do próprio terrorismo de Estado. Deste modo, não subscrevemos a propositada confusão feita entre um Estado soberano e uma nação autodeterminada, mesmo quando aquela decreta assumir-se como Estado-nação. Assim, pretendemos sufragar a ideia-força que foi proclamada pelo Professor Adriano Moreira, para quem está em crise o Estado Soberano, mas não está em crise a Nação (). Glosando este tópico, sempre poderíamos salientar que está em crise o Estado a que chegámos, dado que o mesmo tanto está sujeito ao desafio do unificacionismo mundialista, como ao do small is beautiful, isto é, aos desafios centrífugos. Aquilo que, Adriano Moreira, na esteira de Teilhard de Chardin, qualifica como a lei da complexidade crescente nas relações internacionais, que é acompanhada por idêntica complexidade crescente na reconstrução da polis. Há divergências e convergências que só podem ser superadas, não pelo ecletismo ou pela síntese, mas apenas por aquilo que Chardin qualificava por emergência, por aquela energia que lança para cima e para dentro, na direcção de um estado cada vez mais complexo e mais centrado.
Retirado de Respublica, JAM